Humor ao alto CXXI
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Era um tipo terrivelmente supersticioso. Perdia a cabeça só de pensar certas coisas.
Teve uma infância feliz, cresceu sem traumas. Mas, adulto, começou a dar-lhe aquilo. Recorreu a psiquiatras, psicanalistas. Fez terapia regressiva, exorcismos, acupunctura. Meteu-se ou meteram-no, nos chás e beberagens, astrólogos, macumba, candomblé, djambi, videntes e nos bruxedos mais clássicos.
Em vão! Até ao fim da vida, persistiu naqueles pavores supersticiosos, fechado em negativas epilépticas, transido de medos parvos. E, em sexta-feira 13, nunca foi capaz — entre outras recusas piegas — de meter a cabeça debaixo da pata do elefante ou, pasme-se!, de dar um beijo, um simples beijinho, na boca do tubarão.
O caso só não teve consequências laborais porque o dono do circo era irmão do domador.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 56, Campo das Letras, Augusto Baptista
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Os dias passava-os à mesa. As noites também. Para ele, viver era comer. Naturalmente, inchou de engorduramento. A barriga cresceu-lhe, engoliu o peito, o pescoço, a cara. Os braços ficaram reduzidos a duas mãos sapudas. Para baixo, só barriga e pés.
A bem dizer, era enxúndias com boca. Um dia, exagerou. Entretido nas papas de sarrabulho, no cozido, sôfrego na feijoada com orelheira, rebentou. Compressão excessiva de gases com entupimento da válvula de segurança, segundo o relatório técnico dos bombeiros.
A deflagração ouviu-se longe. E de longe veio gente ver a cratera, os estragos: vidros partidos, telhados pelos ares, paredes sujas de papas, feijão, orelheira. Mas o pior ainda era o cheiro gordurento daquela devassa intestinal. Uma esterqueira. Um nojo. Uma vergonha, mesmo no centro escorregadio da vila.
Os familiares assumiram as culpas. Hipotecaram-se na limpeza, até ao último feijão. Gastaram fortunas. Desinfecções, garrafões de perfume francês, água de rosas. E, sempre, reincidente, um fedor em crescendo. Pivete assanhado de papas azedadas, que a mais leve réstia de sol desentranhava das pedras, inclemente. A alma do falecido? Logo, mais limpezas. Mais despesas.
Em consequência, houve que cortar à boca. Radicalmente. Semanas depois, os filhos, mirrados, finaram. Pele e osso, tísicos, mulher, netos, primos, tios, despediram-se. Todos. Mas não passaram pela vergonha de na vila se dizer que os do gordo eram porcos.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 70/71, Campo das Letras, Augusto Baptista
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
Urgência literária
Livro! Um livro! Um livro na estante, já! Um livro, que o gato salta ao canário!
In O caçador de luas, pág. 65, Augusto Baptista
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
O Homem que caçou a deusa
Levou a arma à cara. Cano virado para o céu, um tiro. A criatura, cega ao rumo que levava, caiu.
— Busca, Flecha! — ordenou o caçador.
A perdigueira, a abanar o rabo, fez-se ao monte. Breve regresso: na boca, Diana, morna ainda.
In O homem que, pág. 30, Augusto Baptista
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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
Intriga aquosa
Envolto em águas turvas permanece o caso do aguarelista água-oxigenado, Aquário de signo, aparecido numas águas-furtadas, a boiar. Tudo por causa de uma aguarela de água-chilra.
Num desespero de aguardente, terá ele regado a aguada com aguarrás, terá mergulhado depois na tina de água-forte?
In O Caçador de luas, pág. 94, Augusto Baptista
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
Carta na manga
No que dizem ser o visionamento do filme derradeiro, entre relâmpagos de recordações, rostos, episódios, memórias, perpassa a frase: O tabaco rouba trinta anos de vida. O moribundo faz pause, soergue-se, tússico (à volta a família, na impaciência do desenlace): — É só para vos avisar que resolvi deixar de fumar!
Tão logo se cala, a grafonola arranha um fado. De Coimbra.
In O caçador de Luas, pág. 86, Augusto Baptista
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Acordou de má catadura: — Ó mulher, deixa-me a cabeça em paz! Cata o rapaz!
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 65, Augusto Baptista
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
A morte é um facto horizontal.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 75, Campo das Letras, Augusto Baptista
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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Aquela história fazia-a chorar: tinha a letra muito miudinha.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 63, Campo das Letras, Augusto Baptista
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terça-feira, 30 de novembro de 2010
Destinos paralelos
Ao primeiro olhar, encandearam-se. No desvario, ele corre para o banco do jardim, fica a aguardar; cativa do mesmo impulso, sentada no banco ao lado, ela, também à espera.
In O caçador de luas, pág. 125, Augusto Baptista
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segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Pilifobia
Nasceu-lhe um no braço e logo desatinou: tinha asco a pêlo! Repugnavam-lhe barbas, bigodes, tranças, cabeleiras, penugens, toda a ocorrência piliforme, em suma. Com um hábil e demorado acompanhamento familiar foi possível relativizar o incidente, vencer o trauma. E ganhou estofo para depreciar os cabelos que lhe haveriam de nascer na palma da mão, as madeixas peludas a crescerem-lhe na planta dos pés, os fartos entrançados a soltarem-se do palato, a poupa ondulada a emergir-lhe da língua, os densos caracóis a saírem-lhe dos olhos... A cada achaque, sábia, a mãe aquietava: Há gente, filha, há gente a quem pêlo nasce até no coração...
In O caçador de luas, pág.117, Augusto Baptista
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sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Cara mirada
Todos os dias, estremunhado e grave, José cumpre o dispendioso ritual de se mirar ao espelho. E logo se parte a rir: de José, o espelho.
In O caçador de luas, pág. 49, Augusto Baptista
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quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Sonhava escrever com a leveza do voo de um pássaro, assinar ofícios com o fulgor de uma estrela cadente, luz apenas.
Naquela tarde, gozo de menino a rabiscar paredes, resolveu adestrar a mão. Ritmos poéticos, a Parker corria leve no papel. Autónoma, precisa. Refulgências de ouro por baixo de "O Administrador-Geral". Ele absorto, perdido, cabeça longe.
Fez trezentas assinaturas assim. Trezentos ensaios perfeitos. Trezentos depedimentos de sonho.
In Histórias de Coisa Nenhuma e outras pequenas significâncias, pág 95, Campo das Letras, Augusto Baptista
terça-feira, 23 de novembro de 2010
O homem que lê o céu
Abre o guarda-chuva, põe a mão no ombro dela. E caminham sob um céu nocturno, tecto de galáxias e muitas formações estelares. Soletram Piscis Austrinus. Riem de Canis Minor. Comentam Monoceros. Percorrem Serpens Cauda, Andromeda, Cassiopeia, Ursa Minor. Enlaçados em Delphinus, rente a Orion se beijam. Lá fora o dia espreita.
In O homem que, pág. 24, Augusto Baptista
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Quando
Quando muda de sentido, conforme os animais. Por exemplo: Quando um bebé abre a boca é diferente de Quando uma onça abre a boca ou de Quando uma cobra-cuspideira abre a boca ainda de Quando um tubarão... Quando um director-geral...
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 39, Augusto Baptista
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010
O adeus
Nos clássicos movimentos de um cumprimento, a mão do doutor Proença desprendeu-se. Acidente: que, no aperto de dona Josefa, não houve ardor.
Ao sentir coisa grudada aos dedos, num gesto de automática defesa a senhora sacudiu. Projectada, a mão do doutor Proença caiu, enérgico desamparo, no empedrado.
Ganhando brusca consciência do caso, sem cuidar da mão, dona Josefa desfez-se em desculpas e perdões. Alheio, olhar na ausência, no coto, o doutor Proença aquietou:
— Deixe, minha senhora. Que havemos de fazer? É a vida.
De repente, desperta pelo magnânimo desprendimento, acirrada pela culpa (que não teve), dona Josefa apressa-se, calçada abaixo. Quando, ofegante, chega à margem, já a mão do doutor Proença, a vogar no rio, é um aceno.
In O caçador de luas, pág. 60, Augusto Baptista
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Entra e logo o dono do estabelecimento:
— Muito bom dia dona Mariazinha. Então que manda?
— O costume, senhor Silva.
Foi à estante, colheu uma braçada dos de lombada grossa, pesou.
— Três setecentos e cinquenta. E que mais?
— Olhe, já agora, levo um par de badanas. E uma dúzia de frontispícios, para o gato.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 35, Augusto Baptista, Campo da Letras
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segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Em noites de tempestade, gosto de abrir a janela, sair. Quem me surpreender depois a vadiar num céu de relâmpagos talvez julgue ver um anjo migrante, tresmalhado do bando. Enquanto, a saltar entre lianas de luz, eu, simplesmente Tarzan.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 67, Augusto Baptista, Campo das Letras
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
Histórias de Coisa Nenhuma e outras Pequenas Significâncias
Finalmente o patrão mandou-o entrar. Chapéu escuro entre mãos claras, Herodes, o escriturário, postou-se em frente da secretária.
— Então que há?
— Peço imensa desculpa, senhor Tavares... Tomei a liberdade de vir lembrar que estamos no Natal (silêncio). E era para o senhor, nesta quadra tão (roda o chapéu entre dedos), fazer o favor de não se esquecer...
Olhou para o velho, condoeu-se. Lembrou-lhe alguém familiar. Mas recuperou o sangue-frio.
— Todos os anos a mesma lengalenga. Ó homem, olhe bem para mim. Acha-me com cara de menino Jesus?! Olhe bem!
Olhou. A cara redonda, as bochechas alvas, quase transparentes... A manjedoura... Fazia sentido: o senhor Tavares era o menino Jesus! E ele? Que fazia ele diante do menino? Que mantos reais lhe cobriam o corpo mirrado? Para quê a cimitarra erguida entre mãos, o gume, fulminante, a projectar-se para baixo?
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 98, Augusto Baptista
segunda-feira, 4 de outubro de 2010
Sondagem de opinião
Em cada 5 portugueses, 10 são contra.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 100, Augusto Baptista
sexta-feira, 1 de outubro de 2010
Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias
Minha muito Amélia querida:
Reflectiu. Solução demasiado possessiva. Outra folha.
Muito Amélia querida:
Muito Amélia... Não ia perceber. Outra folha.
Amélia querida:
Pouco e muito. Afinal, apesar de sempre juntos, nunca nada... Depois, as idades, a diferença de letras. Tentou:
Querida:
Querida, uma violência! Assédio: processo e rua! E optou por fazer como ela dizia, sempre lúcida, no despacho: "Nada como dormir sobre os assuntos!"
Pela manhã, mais prudente, resolveu o caso. À primeira:
Excelentíssima Senhora Doutora D. Amélia Leão
Digníssima Chefe da 3.ª Repartição de Finanças
Veneranda Senhora:
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 15, Augusto Baptista
quinta-feira, 30 de setembro de 2010
Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias
— Tenho um gato que pesa cento e cinquenta quilos.
— Mas isso é um tigre!
Coça a cicatriz, extensa, no coto do pescoço.
— Será?
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág.68, Augusto Baptista
terça-feira, 28 de setembro de 2010
Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias
À despedida, sacramental, a recomendação: Vai devagar. Tens tempo, meu filho.
Luisinho sai e dona Dulce queda-se à porta: o caminho de terra batida, a laranjeira, a pedra do pátio, o pé de couve, o muro, o último aceno, à esquina. Depois a estrada, infinita.
Dona Dulce deixa-se ficar, olhar na ausência, coração nas mãos: o desatino, as correrias, os repentes dos miúdos no recreio.
Mãe é mãe!
Ao cair da tarde, Luisinho surge à esquina, no muro. Um aceno. Depois o pé de couve, a pedra do pátio, a laranjeira, o caminho de terra batida... Dona Dulce na eternidade de quem espera.
Alta madrugada, enfim, nos corninhos um do outro. Todo suado! Havia necessidade de vires a correr!? Mãe e filho lavados em baba e ranho. Dá cá um beijo, maroto! Corpos em caracol colados.
In História de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 92, Augusto Baptista
segunda-feira, 27 de setembro de 2010
O país de Alice
Num estranho acidente, as mãos da menina Alice ficaram presas na porta do autocarro 35. Avaliadas as hipóteses de desencarceramento, os técnicos concluíram: melhor seria não arriscar. Posta ao corrente, concordou, tanto mais que lhe garantiam o mesmo ordenado do escritório, descontos para a Segurança Social, subsídio de refeição, pernoitas. E, ademais, sempre que quisesse, a família podia vê-la. A partir daí, dia e noite, a menina Alice e o 35 passaram a viver juntos: um casal, a bem dizer. A ocorrência tornou-se notícia, com cobertura mundial de televisões, rádios, jornais. A sorte grande para a menina Alice, que parecia condenada a passar a vida a teclar ofícios, mãos presas à velha Remington.
In O caçador de luas, pág.16, Augusto Baptista
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sexta-feira, 24 de setembro de 2010
O sem abrigo
O casamento, o bem-estar, o espaço, tudo sacrificou por amor aos livros. Vivia para eles - mancha crescente a acastelar-se nas paredes da casa, a atapetar o soalho e a engordar em montículos, logo conglomerado denso, cada vez mais grosso, avidamente a consumir o quarto, corredor, cozinha...
E veio um tempo em que só de pé podia dormir, após rastejos entre galerias de papel, lombadas, letras, vocábulos. E sempre novas edições, prémios Nobel, jogos florais, suplementos literários, colecções, irrecusáveis desafios à pulsão bibliófila. Breve, impedido de ler, entrava em casa de pé-de-cabra, assalto árduo, corpo na disputa milimétrica entre obras empilhadas, monolítico ocupante.
Ontem forçou a porta, delongadamente. Pelo minguada fresta alcançada, logrou introduzir uma derradeira obra: delgado impresso de folha única, papel bíblia. E, expulso de casa pelo amor aos livros - objectos cruéis, o livros -, partiu em demanda de uma outra paixão, num sítio qualquer.
In O caçador de luas, pág 66, Augusto Baptista
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quinta-feira, 23 de setembro de 2010
Arte e manha
Quando a desoras passou no teatro, a corista saía em passo miúdo, saia travada. E fez-lhe um sinal. Seguiu-a, sem uma palavra, sulcou a cidade, até ao limite. No outro lado do rio, esperava-os a talha baça de um altar, penumbrado pelo bafo de círios e álcool, entre anjos, santos, crucifixos, caruncho. E um padre rançoso. Sim é tudo quanto se lembra ter dito, por isso vagamente lhe ser perguntado.
In O caçador de luas, pág. 134, Augusto Baptista
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quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Pecado mortal é a irmãzinha comer o feijão-frade na sacristia.
In histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág.71, Augusto Baptista
terça-feira, 21 de setembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Ao contrário do que se pensa, os homens não são poluidores. São biodegradáveis.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág 97, Campo das Letras, Augusto Baptista
segunda-feira, 20 de setembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
O foguete rebenta, nas nuvens. Em curvas largas e volteios indecisos, a cana circunda a romaria. De repente, embica para baixo, veloz, determinada. E crava-se, letal, mesmo no alto da careca do presidente da comissão de festas. Para o ano que vem, o fogueteiro tem debaixo de olho o presidente da junta.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, Campo da Letras, pág. 85, Augusto Baptista
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
Prenda de anos
Irá oferecer o quê ao filho, pelos anos? A resposta paira no que gostaria ele de ter recebido num dia assim, do seu próprio pai. Talvez um bibe ornado de coelhos com chupeta a condizer, ou um ursinho de peluche castanho-claro, coleira e guizo, embora o pêlo, chamariz de ácaros, aconselhe a opção arejada de uma carreta dos bombeiros, ou de um carro desportivo em ponto grande, boneca loira sentada à frente, ele ao volante, prego a fundo, no porta-bagagem uma caixa de charutos e muito Habana Club.
In O Caçador de luas, pág. 114, Augusto Baptista
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quinta-feira, 16 de setembro de 2010
A viajante
Abordou o balcão decidida a tratar de tudo e embarcar nessa mesma noite ainda. Perguntada pelo destino, de tão perdida, pediu ajuda.
Propuseram-lhe Austrália, vida selvagem, cangurus; o mar azul-ferrete dos Açores; Ásia, o ar puro dos Himalaias; América, cordilheira andina, vestígios incas; África, o arrepio do deserto do Calaari.
Deixou-se tentar pelo Brasil poético: preço a não arruinar o orçamento, opiniões encorajantes. E correu para casa, ultimar detalhes, que o tempo urgia.
Breve, assento fofo de primeira, perna esticada, nos joelhos uma manta grossa e, entre mãos, aberto, o passaporte a franquer a viagem: "Poesia Errante: derrames líricos, e outros nem tanto ou nada", de Carlos Drummond de Andrade.
In O caçador de luas, edição gatopardo 2003, pág.20, Augusto Baptista
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quarta-feira, 15 de setembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Anda pela rua, aos pulos, braços no ar, as mãos em agitado abre-fecha, como se quisesse caçar estrelas, talvez pirilampos.
A cidade ignora-o. Mas tempos houve em que todos o adulavam. Isto antes de a sua sorte ter mudado, naquele jogo, naquela sinistra flor: pontapé de baliza em toque de calcanhar!
Num poético rodopio, a bola flectiu para a direita, rasteira, inocente. E quando parecia ir desfalecer a escassos metros, por acção de um intrigante contra-efeito, reanimou em inesperados ziguezagues, junto à linha lateral. Ele, ao longe, a medir o trajecto calculado.
Toda a gente apanhada de surpresa, lá no fundo a bola angulou noventa graus: exactos, mesmo no canto da bandeirola. E, cega de golo, raiou em arco. Para a baliza.
— Ahhh!
Contra a barra, exprimiu-se num trovão, a bola. E da barra ressaltou para a frente e muito por alto. Excessivamente para a frente, demasiado por alto: sobressaltou-se!
Naquela hora, mandavam as leis da Física, ele sabia. Leis avessas a sortilégios e magias. Impotente, viu a bola cruzar o campo... O estádio suspenso, viu, baliza a baliza, meu Deus, viu a bola a cruzar o campo... a romper pelo ar o reduto defensivo, a crescer, a ganhar volume de ameaça, a bola...
E ele viu, desesperadamente, apontada ao ângulo, viu, fulgor de relâmpago, viu a bola a entrar, mágica maravilha, a bola, o estádio, as pessoas, tudo a entrar, tudo a explodir em estrelinhas no fundo das malhas, loucas estrelinhas no fundo das malhas, tantas e tão inesperadamente no ar, tão ali ao alcance das mãos, a tremeluzir...
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 93, Augusto Baptista
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terça-feira, 14 de setembro de 2010
No desmaranho do turundundum
O miralmuminim excogitou conjúgio à legatária, pucela núbil semiscarúnfia, aveza a seramangar. Antre solfa, kissanges, cuícas, dicanzas, sanfonhas, e caporroto, e grogue, e bué de pitança, no alcaçarel bruou funçanata. E per las quadrelas, alcaçarias, vilares, glebas, se adentraram pervicazes caduceadores conubiais, azoinando o assessegamento das poblas.
Um dardanário senecto, malroupido, façudo, malacafento, esculcou-se da poranduba, soforou o solípede, alou.
Empero, de longada uma mofina procela se alvorotou. Trépidos, no desmantelo, azemel e mua se amocambaram em lutulenta madrigoa. Moxinifados no valhacouto, subitâneo assonou um cerebrino quasímodo, façulas manga flagiciosas, qua-tal um aveediço olhizaino, aprestado de gládio e chuvim.
Metafisga de factótum, o onzenário fariscou alá gadunhas do exu:
— Uxte! Zurre!
O cramulhano alforfilhou com polvorinho uzifur e reboo. Concomitante, na cureta da lura surdiu ebúrneo Pégaso.
No terragido, o chatim malazengo alquinou presentaneamente. Nessora, o empíreo tetrópode esgalreou o escanifrado tergo do bucéfalo. E no angu, volitaram, zinzilularam, turbilhonaram, delongado prazimento célico. Presto, em inconcussas boninas, se despartiram.
Dementre, no alcançarel, a avondada pucela conjungiu-se com um pecunioso proco: símil ao solipso dardanário macróbio, delfino no desmaranho do turundundum.
In O caçador de luas, pág. 126, Augusto Baptista
segunda-feira, 13 de setembro de 2010
Uma história exemplar
Era uma vez um casal de piolhos que conseguiu instalar-se numa bonita cabeleira. Com o tempo a trupe cresceu, conquistou outras cabeças. E não tardou a assumir o poder.
Ninguém mais se coçou.
In O caçador de luas, pág. 75, Augusto Baptista
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Uma história exemplar
sexta-feira, 10 de setembro de 2010
A velha que escrevia cartas de amor
Chegou encolhido, mão a segurar a mão, olhos baixos. Velha Serafina abriu a porta, cautelosa:
— Que mandas?!
Levou a mão ao bolso, insinuou a carta.
— Entra.
Sem delongas, à luz intimista da candeia, a velha leu a missiva devagar, entoação melosa a meia-voz. E Mariano ouvia. Afogueado na cara, nos olhos, nos olhos presos às mãos entrelaçadas, ouvia. Ouvia, em sobressalto.
Finda a leitura, breve diagnóstico ao rosto do rapaz, Serafina compulsou modelo competente em As trinta mil e três mais apaixonadas cartas de amor, grosso almanaque. Dextra, breve achou resposta adequada. Caligrafia cuidadosa, palavra a palavra soletrada, transcreveu:
Minha Senhora,
Quando li a sua declaração, confesso que fiquei aturdido. Vivendo Vossa Senhoria na cidade, onde não lhe faltarão pretendentes, como explicar o seu interesse por um moço da aldeia? Diz serem sérias as suas intenções. Sem disso querer duvidar, sinceramente, temo haver atrevimento excessivo no que me propõe, ousadia só possível numa mente tresloucada pelos doces eflúvios do amor.
Apesar de adivinhar na sua missiva boas intenções, não me atrevo a conceder-lhe encontro no domingo. O ardor da paixão aconselha recato, neste meio tão pequeno, ademais envolvendo uma senhora citadina e, acrescidamente, viúva. Imprudente seria pois, como sugere, vir esperar-me à saída da missa para o seu rosto apaixonado aí romper o anonimato.
O mais que se pode fazer, para não atearmos as vozes do mundo, soltarmos veneno alcoviteiro, é eu esperá-la na sexta-feira à noite, na casa da eira, ao pé do moinho, depois, claro, de toda a gente se haver acostado. Poderá então Vossa Senhoria tirar a máscara e desvendar, sem sobressalto ou pressa, tudo o que tem para me dizer.
Com sumo respeito, fico a aguardá-la.
Este que se assina,
Mariano
A explodir no calor da lareira, Mariano tudo escutou, sem um reparo. Velha Serafina fechou o envelope, escreveu o endereço da desconhecida amante.
— Tira-te de cuidados, amanhã compro selo e mando.
— Nem sei como agradecer, senhora Serafina.
— Não faltará ocasião.
Dissolvido na noite, Mariano sai. Serafina, rigorosa, guarda a carta no fundo da gaveta. Pelo anel passa uma ponta de lã, dá discreto nó: uma lembrança. Mera precaução para não se esquecer de sexta à noite, do compromisso.
In O caçador de luas, pág. 132, Augusto Baptista
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
A função e o órgão
A função faz o órgão, modela o indivíduo: disso a vida nos dá inúmeros testemunhos. Destaque nos jornais teve o caso do serralheiro-mecânico londrino, braço direito transformado em chave inglesa. Absurda ocorrência foi a cabeça do pedreiro alemão, muito cerebral na obra, concretizar-se em vulgar tijolo-burro. Patética é a história do cirurgião-cardíaco, que, paulatinamente adelgaçado com o refinamento do corte, um dia se revelou bisturi.
Mas há exemplos mais inquietantes.
Todos recordarão o matemático argelino tornado algarismo. E como não citar, acontecimento que traz ufanos os confrades de Língua, o escritor brasileiro modelado em vocábulo? Mas, o mais intrigante, permanece o caso dos músicos austríacos - ela, soprano; ele, contrabaixista - progenitores de uma numerosíssima prole de notas musicais.
In O caçador de luas, pág. 47 Augusto Baptista
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quarta-feira, 8 de setembro de 2010
Os primeiros passos
De tempo, só precisava de tempo (e de remover um pequeno obstáculo) para vencer na escrita. Pela manhã, fez a mala: várias mudas de roupa, resmas de papel, dúzias de lápis. E foi entregar-se à polícia, não sem antes ter passado pela casa do editor.
In O caçador de luas, pág. 90, Augusto Baptista
terça-feira, 7 de setembro de 2010
Confronto
Peito à mercê, João. Inclemente, António prime o gatilho. O cão, avanço tenso, fere o fulminante. Como esperado, a acção percutora desperta na pólvora dormente uma reacção demencial. Envolta em névoa de gases compressos, a lamber a alma estriada do cano, a expandir-se em detonação na boca, na boca da arma, a bala!
Na brevidade de um ui, destino precordial, o projéctil ousa anatómico percurso: rompe a pele, a fáscia superficial, a fáscia profunda, rasga o grande peitoral, insinua-se no quinto espaço intercostal, rasga a musculatura breve, penetra a fáscia endotorácica, o saco pericárdico, dilacera o ventrículo direito numa desmesura negra...
Coração a fibrilar, desconexão caótica de impulsos e espasmos, olhos esbugalhados, indicador tenso, João prime o gatilho, inclemente. Peito à mercê, António. O cão, avanço tenso, fere o fulminante. Como esperado,
In O caçador de Luas, pág. 100, Augusto Baptista
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segunda-feira, 6 de setembro de 2010
Reflexo voraz
No balanço de água mansa que lhe banha os pés, vê a sua imagem adolescente ondear, quieto reflexo transparente à tona. Um fio líquido distende um pormenor, de supetão logo outro, e o resto se revolve no redemoinho, num instante. Na elástica tensão e distensão da superfície, o reflexo rola desconexo, tropeça nos cotovelos pedregosos junto à margem, rasga-se nas arestas aceradas dos roquedos, balbucia, imerge no tumulto da curva de águas derrapantes.
Insondáveis liames retrocedem ao lume de água, no lapso de um chicoteio, outros se insinuam no ânimo líquido, traiçoeiros buscam os pés adormecidos no remanso, e os alcançam, e os enlaçam no ímpeto da corrente.
In O caçador de luas, pág. 97, Augusto Baptista
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domingo, 5 de setembro de 2010
A morte do artista
A mulher descalça estendeu na relva uma toalha líquida e sentou-se, à margem. Nas mãos claras, uma garrafa guardava já a mensagem pungente, desenlace escrito em papel mortalha. Um passarinho esmaecia a tarde num gorjeio roxo. Foi quando o trapezista amarrou a corda no céu e, sob um rufo baço de tambores, deu início à cerimónia.
In O caçador de luas, pág. 96, Augusto Baptista
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sexta-feira, 3 de setembro de 2010
Quebranto
O torpor do Lobo Mau depois de engolir a Avozinha.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 41, Augusto Baptista
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Polvo
Molusco com oito braços chamados pernas.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 38, Augusto Baptista
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quarta-feira, 1 de setembro de 2010
Melro
O que anuncias no teu bico libertário, melro negro?
— Morte! A morte, ao cativeiro!
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 31, Augusto Baptista
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Dúvida
O que terá aparecido primeiro: o anzol ou o peixe grelhado?
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág 15, Augusto Baptista
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
Quebra-luz
Dono da casa, chinelo na mão; no candeeiro, o moscardo.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 41, Augusto Baptista
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