Zoo
Éden com grades.
In Elucidário oblíquo do reino dos bichos, pág. 53, Augusto Baptista
quinta-feira, 31 de maio de 2012
quarta-feira, 30 de maio de 2012
terça-feira, 29 de maio de 2012
segunda-feira, 28 de maio de 2012
sexta-feira, 25 de maio de 2012
Os gatos e a cidade
O Boneco de Maria
Falar de gatos é também falar da
cidade. E dos donos, se dono gato consente. Boneco, gato branco do Cais do
Ouro – o Porto rente à foz do rio, olhos no Cais da Afurada – abre o tema. A
história conta-a Maria de Lurdes na primeira pessoa, 75 anos, comerciante desde
os oito, filha de pescador, mulher sábia, solidária, vida feita de luz e
sombras, plena de medos, anjos, profetas, pássaros. E gatos.
Texto e fotografia Augusto Baptista
Chama-se
Boneco, tenho-o há 10 anos. Foi
apanhado no meio do rio, pequenito. Veio de cima a correr, avançou os muros do
cais e, frente à prancha, quando viu que o queriam apanhar, saltou. Chegou ao
meio da corrente, já ia.
Andava
então um senhor, com um barco destes pequenos, que por sinal já faleceu, gritei
para ele o salvar. Apanhou-o e trouxe-mo. Botei-o num caixotinho, tinha de ir
ao veterinário, estava muito frágil, cheio de lama, molhado, fui buscar uma
toalha. Enquanto fui, fugiu-me para dentro do barraco, escondeu-se. Dei-lhe
comida, não sei se doze se quinze dias, leite, água. Ele não comeu, estava
cheio de trauma, qualquer coisa
que apanhou lá em cima, ou cão, ou esteve metido nalgum motor de carro.
Eu consumida, não comia, não aparecia. Ao fim desse
tempo, começou a aparecer. Via-o distraído botava-lhe a mão, fugia, deixava-o
ir. Depois começou a comer. Tornava-lhe a pôr a mão, tornava a fugir. Até que
se acarinhou a mim e hoje não vê outra coisa. Se um dia eu lhe faltar, morre.
Assim se passaram 10 anos.
Já esteve muito mal. Se não estivesse nas minhas
mãos, tinha morrido. Há cinco anos deu-lhe a pedra no rim, na bexiga. Era um
domingo, eu sem saber se havia algum veterinário de serviço.
Apareceu então aqui um senhor e perguntei-lhe se conhecia
algum veterinário que trabalhasse ao domingo. Disse conheço e que me levava. Fui com o senhor. A médica disse que ele tinha
de ficar lá um dia. Chegou ao dia, era outro dia, e outro dia. Que se segue, já
ia em oito dias. Entendi que ela estava a comer, ou queria comer. Como me viu
muito agarrada ao animal e o animal a mim, queria tirar proveito. Levou-me, naqueles
sete ou oito dias, trezentos e tal euros. E queria que ele ficasse lá mais um
mês, para operá-lo. Eu não tinha possibilidades e disse Oh senhora doutora, eu sou uma pessoa reformada, não sou rica. É
por isso que morrem muitos animais, levam mais dinheiro por tratá-los do que à
gente. Fui buscá-lo.
Quando o animal me viu, agarra-se a mim como um
bebé, encosta a cabeça aqui no peito,
miau, miau, aos gritos a mim, como quem leva-me.
Se havia eu de lhe fazer carinho, ele é que me fazia a mim, com as unhinhas
fechadas, a fazer-me carinho na cara.
Passou aqui, era nas festas do S. Pedro, nas marés
vivas, passou aqui um senhor, viu o bichinho muito mal. O que é que ele tem? E eu disse Está
muito doente, passou-se isto assim, assim... E o senhor Olhe, eu tive o mesmo problema, e o que me
safou foi um medicamento de uma ervanária. E eu disse-lhe O senhor se soubesse o nome era um grande
favor que me fazia, eu tenho amor aos animais, dou de comer às pombas, dou de comer
a tudo, sou pobre e deixo de comer para dar aos animais, já tenho tirado da
boca para lhes dar. Então ele disse Não
sei se dá para animal. E eu Se
estudam nos animais para nos tratar a nós, se não fizer bem, mal também não vai
fazer… Ele deu-me o nome do produto e eu fui comprar. Com catorze euros,
por Deus, que são sete contos, safei-o.
Foi
habituado aqui, sempre à minha beira. De noite vem ter comigo, olha para os
meus olhos a ver se estão fechados ou abertos. Eu faço que não estou a ver, e
ele lambe-me as mãos, o cabelo, para eu não dormir, pega nestas duas patinhas,
encolhe, até treme com medo de me magoar, faz-me carícias na cara.
É
como se fosse da família. É a minha família. Já tem entrado por aqui a cheia
não sei quantas vezes, já chegaram a vir os bombeiros sapadores me buscar, não
o largo. Nem a ele, nem a uma cadelinha com vinte e tal anos, nem a uma outra
gata que tenho. Já tive mais, tinha-os ali atrás, mas quando era a cheia que
andava por aqui, ia buscá-los. Cheguei a dormir com eles em cima do balcão.
Tristezas,
que agora que o Porto tirou o campeonato, ele anda contente. Um senhor
ofereceu-lhe uma coleira e, outro, um cordão azul e o apito. Não são portistas,
são do Benfica. Sabem que eu gosto do Porto, deram isto ao gato.
Filha do mar
Trabalho
desde os oito anos. A minha mãe teve doze filhos. Eu era a mais velha, criei-os
a todos. Ela saía de manhã para ir trabalhar, para ajudar o meu pai que era pescador,
no tempo da guerra, no tempo em que não havia pão, no tempo do racionamento.
Com oito anos andava já carregadinha pelas rua a pregoar. E nunca enriqueci. Andava a vender peixe. Vendi de tudo: martelinhos, manjericos, meias para senhora, caldo verde, sardinha assada, ovos de cheiro. Ia e vinha a pé, no vento e no frio, para ganhar algum e ajudar a criar os meus irmãos. E o que era o alimento deles? Água fervida com açúcar, e um bico de borracha, quando choravam, que eram de muito alimento. Eu achava um pano, fazia-lhe uma maminha de açúcar para se calarem até a minha mãe chegar e lhes dar o peito. Passei muitos trabalhos. E vinha o carro da Câmara, uma vez por mês nesse tempo, lavar e desinfectar as casas com creolina, por causa das febres tifóides. Eu por acaso nunca tive, mas a minha irmã a seguir teve, esteve internada no Goelas de Pau.
Com oito anos andava já carregadinha pelas rua a pregoar. E nunca enriqueci. Andava a vender peixe. Vendi de tudo: martelinhos, manjericos, meias para senhora, caldo verde, sardinha assada, ovos de cheiro. Ia e vinha a pé, no vento e no frio, para ganhar algum e ajudar a criar os meus irmãos. E o que era o alimento deles? Água fervida com açúcar, e um bico de borracha, quando choravam, que eram de muito alimento. Eu achava um pano, fazia-lhe uma maminha de açúcar para se calarem até a minha mãe chegar e lhes dar o peito. Passei muitos trabalhos. E vinha o carro da Câmara, uma vez por mês nesse tempo, lavar e desinfectar as casas com creolina, por causa das febres tifóides. Eu por acaso nunca tive, mas a minha irmã a seguir teve, esteve internada no Goelas de Pau.
Tanta
fome.
Nunca
tive um brinquedo. Com dezoito anos, por aí, andava uma senhora a vender umas
rifas pelo Natal para uma boneca. Comprei uma rifa e a boneca saiu-me. Dei-a a
uma menina que nunca teve brinquedos, como eu.
O
meu pai era pescador. Para trazer meia dúzia de sardinhas para dar aos filhos
tinham de ser amanhadas e escamadas e com o rabo tirado. Não deixavam passar na
lota do peixe, estavam guardas nos portões. Só arranjadas. Uma ocasião, pelo
Natal, eles recebiam à semana, apanharam um peixito e ganharam alguma coisa. A
consoada era chicharros salgados, escalados, e batatas, era uma piosca – uma roleta, pequenina, o nosso entretimento
na noite de Natal – e era meia dúzia
de castanhas cozidas e meia dúzia de figos. A gente nem comia ao meio-dia, que era
para comer muito à noite.
Nessa
semana o meu pai comprou-nos uns soquinhos, uns para mim, outros para a minha
irmã. Eram de madeira e, em cima, tinham um laço preto, colado. Ofereceu-nos
aquilo no Natal, que eu nunca tive calçado, andava descalça. E pagavam-se
multas. Para eu andar a vender, ia às lixeiras aproveitar o calçado que não
tinha nada por baixo, para não ser autuada.
E
então deu-nos os soquinhos, nós comemos os chicharros salgados, com couves e
batatas, jogámos à piosca, era às castanhas e figos, e lembrei-me, eu e a minha
irmã, que nem havia fogão, era uma coisa de pedra com lenha, uma cinza que
estava ali, vamos botar os soquinhos na chaminé para o Menino Jesus nos trazer
uma prenda. A gente ouvia que era só para os ricos que o Menino Jesus trazia
prendas, mas éramos inocentes, e
então botámos.
O
meu pai que Deus tem, sem ter um brinquedo para dar aos filhos ali nos
soquinhos, pegou numa agulha com linhas, fez um cordão de castanhas e figos e
botou-os em cima. Ao outro dia quando acordámos, a primeira coisa que nos lembrámos
foi de ver o que o Menino Jesus nos trouxe. Quando chegámos à chaminé vimos os soquinhos
com aquele cordão, ficámos tão alegres. Eu andava na rua com os socos, cheia de
vaidade. A nossa inocência, com meia dúzia de figos e meia dúzia de castanhas
em cima dos socos.
Eu
vou dizer mais uma do meu defunto pai. Quando ele estava para seguir o caminho
dele, como nós temos de seguir o nosso, virou-se para mim e disse Tanto trabalhei, para morrer pobre. As palavras
que eu dei ao meu falecido pai foram assim O
dinheiro, meu pai, não vale nada, você foi o melhor pai do mundo. Ele
começou com os olhinhos a olhar e, passado pouco tempo, foi.
Entre um anjo e um profeta
Aqui
há dois anos ou mais, estava eu aqui sentada, perto da meia-noite bateram-me à
porta, perguntei quem era. Responderam-me, mas como não percebi, levantei-me
como se fosse meio-dia e fui abrir. E o que é que eu vi? Um velhinho, barbas
muito grandes, com uma bengala, e disse-me Não
tem por aí um bocado de pão, que eu venho de fazer uma longa viagem, queria-me
encostar a descansar. Fiquei muito aflita, queria dar o melhor, comida
quente, comida boa, não tinha. Fiz umas sandes com chouriço às rodelas e dei ao
senhor. E ele disse-me Agora não tem uma
pinga de água por favor que me dê? Não, vou-lhe dar vinho num pacotinho para o
senhor beber. Eu não queria vinho. Então nem vai beber vinho nem água, vou dar-lhe
uns sumos. O senhor foi à vida dele e até hoje nunca mais o vi. Foi por
acaso? Com tanta casa aberta, tanta luz, e vir aqui a este fundão, que só
existia eu neste barraco, que é um ermo, foi por acaso? Não posso dizer quem
era, mas só sei que a conversar com um senhor ele me disse Nunca mais o viu, nunca mais o vai ver, era um profeta.
Também
não é por acaso que quando eu tive uma embolia pulmonar e estive internada no
Santo António, uma noite, estavam as luzes apagadas, tudo em silêncio, eu com os
olhos fechados, mas acordada, no meu juízo perfeito como estou agora, senti que
estava ali alguma coisa à minha beira. Abri os olhos. Aos pés da minha cama era
assim um nevoeiro, e, por trás do nevoeiro, uma imagem. Não sei se era A, se
era B, se era quê, não sei quem era. Mal abri os olhos e vi, aquilo foi-se.
Para mim, pelo símbolo que eu vi, posso estar enganada, para mim era o anjo da
minha guarda que estava ali a tomar conta de mim.
Sempre fui humana
Vem
aqui tudo parar. Quando as patas estão com os ovos, às duas e três da manhã já
me tenho levantado para lhes dar comida. Que elas chamam por mim. Já me conhecem.
As patas dormem em cima das pedras. E anda aí também um ganso-pato. Eu chamo por
ele, para lhe dar de comer e ele vem ao meu chamar. E há uma gaivota que só vem
de noite, chega, olha para mim, à espera que eu lhe dê de comer. Eu guardo
sempre qualquer coisa para lhe dar. Aqui há tempos, não pude ir logo, cheguei e
ela estava pousada num barco. Chamei-a Oh
pequenina então tu não vens comer? Ela levanta e vem ter comigo. Andou
também aí um pato mandarim. É do feitio de um garnizé, é um garnizé direitinho.
É produzido na Inglaterra, e vive no Japão e na China e na Rússia.
É
aqui que eles param todos. Quando chegam, todos vêm aqui, alguns começam a
palrar. E há patos pequeninos que nascem cá. À beira daquele barraco, daquele
quiosque, está um ninho de pato coberto de folhas.
São
seres vivos como nós. Antes da gente, as aves já cá andavam. O mundo foi
habitado por aves. Já tinham dois mil anos, ou dois milhões, que cá andavam.
Depois é que nós chegámos atrás delas.
Aqui
há tempos fui ao supermercado nos Lóios e vi algumas pombas. Antes, mal me viam
andavam logo à minha volta, agora têm medo, andaram para lá a matar. Ao menos
podiam botar qualquer coisa para elas não produzirem. Agora matar não acho bem.
Todos têm direito à vida.
Sempre
fui humana, não sei se foi por viver nisso, mas há muito quem tenha vivido nisso
e até são mais ordinários.
Uma
ocasião, estava na Afurada na minha casa, encontrei doze gatinhos. Passei por
aquilo e fiquei doente. Fui arranjar uma caixa de papelão e botei-os lá dentro.
Vim-me embora. Quando cheguei a casa começou a cair saraiva e lembrei-me que os
bichos iam morrer. Fui buscá-los, trouxe-os todos. Com essas borrachas de
limpar os ouvidos, criei-os a leite, leite magro. Eles quando me viam com a borracha
já sabiam que era para lhes dar de comer. Era quem mais queria ser primeiro. Davam
a mamada, tiravam a boca e olhavam para mim. Como os bebés fazem às mães, assim
eles faziam. Criei os doze e viviam os doze comigo.
Outra
vez, ia a sair de casa, parece que os animais conhecem a gente, aparece-me um
cão que nunca me viu, nunca eu o tinha visto, com uma pata ao dependuro, assim
direito a mim, à minha porta. Não fui trabalhar. Fui tratar dele para a
protectora dos animais. Era assim. Eu até se visse um cão morto ia a casa, pegava
num lençol, cortava a meio, ia embrulhar o cão, fazer uma cova e enterrava-o. Quantas
covas eu fiz naquele monte da Afurada.
Uma pessoa assim
Sou
Maria de Lurdes, nasci a 20 de Dezembro, tenho 75 anos, mas no meu cartão de
identidade tenho menos um ano e faço em Janeiro, porque a minha mãe roubou-me à
idade. Que, antigamente, para não se pagar multa, pagava-se quando se fosse
registar fora do prazo, ela deu a data trocada. Mas a verdadeira data e os anos
que eu tenho são 75, mas no cartão de identidade são 74.
Nasci
na Afurada, sou dali, nascida e criada. Tenho lá casa, mas é muito antiga, e
como não tenho dinheiro para arranjá-la, fico aqui no Cais do Ouro a tomar conta
do barraco. Isto não tem nada que roubar, nem dinheiros, nem nada, mas esta
juventude… Quando eu não ficava cá entraram oito vezes, destruíram tudo.
Não
casei, nunca casei, para criar os meus irmãos. Fui mãe deles todos. Mas hoje
não dão valor. A minha mãe teve
doze filhos, seis estão vivos. Eu acho que nenhum é igual a mim, somos
diferentes. É natural, temos cinco dedos na mão, nenhum deles é igual.
Não
andei na escola, nem andei a estudar, nem andei a fazer nada. Vivi na rua. Há
pessoas que passaram por tudo, mas a vida sorriu-lhes, são os maiores. Julgam-se
mais do que os outros, mas vamos todos para o mesmo buraco.
Noutro
dia ia no autocarro, estava sentada e ao lado tinha um lugar vazio. No outro
lado estava uma senhora sentada. O cavalheiro, que era um cavalheiro para todos
os efeitos, preto, mas educado, e a fulana quando o viu ali começou assim a
virar a cara e diz o senhor para mim A
senhora não se importa que eu me sente? Homessa,
o senhor não pagou o seu bilhete como eu? A outra mostrou fraca cara para
dar achega a ele O senhor tem tanto
direito como eu e o mesmo direito que qualquer pessoa que aqui vai. Sou uma
pessoa assim.
NOTA
Este texto foi escrito com base numa amena conversa com Maria de Lurdes, Cais do Ouro, no Porto, tarde de 20 de Maio de 2012.
quinta-feira, 24 de maio de 2012
quarta-feira, 23 de maio de 2012
terça-feira, 22 de maio de 2012
segunda-feira, 21 de maio de 2012
sexta-feira, 18 de maio de 2012
quinta-feira, 17 de maio de 2012
quarta-feira, 16 de maio de 2012
Quantíssima tormenta
No céu da tarde de repente uma nuvem negra rompe-se em formas abstractas, fragmentos que se reúnem numa adelgaçada barbatana, logo num corpo aéreo. E o tubarão evidente que dali nasce tem à perna uma prole de vinte descendentes, lixosos, negros como o pai.
Cúmulo-nimbos em densas matilhas faíscam lumes com faunos rabudos, torsos agorilados, gargantas escancaradas. Mais acima, asas tímidas, farrapos nebulosos com garras. Além, uma serpente evola de Leste a Oeste, num chicoteio espiral que envolve em reboliço a turba. Ah, o rei dos animais à caça, juba hirsuta e rabo agitado, em rodopio uma manada de gnus, aí uns mil, a ocupar a abóbada celeste quase toda.
O tubarão reúne a prole e posta-se à frente, defensivo. Os faunos assediam a serpente alada. Um jacto de veneno vaporoso salta da barriga do réptil. Luta de titãs, os bichos se ensarilham num ardor de tempestade. Ribombam furacões, se agoniam trovões, os céus ensandecem-se em relâmpagos.
No chão, um casal de patos observa ansioso a insânia aérea, na expectativa de ver encher-se, enfim, a lagoa que o estio severo mirrara tão sequiosamente.
In Elucidário oblíquo do reino dos bichos, pág. 40, Augusto Baptista
terça-feira, 15 de maio de 2012
segunda-feira, 14 de maio de 2012
sexta-feira, 11 de maio de 2012
quinta-feira, 10 de maio de 2012
quarta-feira, 9 de maio de 2012
Faroeste
De uma das portas da rua nova, emerge o cowboy. Olha para um lado, para o outro, fareja. Esporeia a montada aos relinchos e, com aparato, volteios e tiros, parte a galope.
Sem tardança, alcança o fugitivo ofegante, cansado dos pés, no justo instante em que tenta esgueirar-se para o interior da loja. E, à vista de todos, sem dar tempo a que alguém acuda, o revólver do cowboy relampeja. E logo a winchester reluzente que traz a tiracolo, misericordiosa, põe fim ao pleito: um tiro na testa.
No sobrado da pacata loja de malhas e miudezas, mesmo no centro do burgo, jaz o corpo de um índio, a atrapalhar o negócio.
Passado o silêncio que sempre se abre após o tumulto, o índio ainda ensaia abrir um olho. Ressuscitar, timidamente. Para depois fugir. Retomar a contenda. Mas, exausto, acha melhor acabar por ali.
E morre.
Os contendores, juntos, rumam a casa para, no saloon familiar, tombarem uns copos: o dia está quente e, na rua, não há chafarizes. No trajecto, o heróico cowboy prende o pé no tubinho, vero arame de tropeçar, que, dissimuladamente, como convém a este tipo de armadilha, mandaram instalar. Cai, não cai, bate com a testa no cubo de pedra contíguo, desfalece. Indignado, o índio parte o nariz a um elefante estacionado.
Acaba tudo num lugar longínquo, que na cidade não há urgência pediátrica. Nem clínica veterinária para bichos de grande porte.
E morre.
Os contendores, juntos, rumam a casa para, no saloon familiar, tombarem uns copos: o dia está quente e, na rua, não há chafarizes. No trajecto, o heróico cowboy prende o pé no tubinho, vero arame de tropeçar, que, dissimuladamente, como convém a este tipo de armadilha, mandaram instalar. Cai, não cai, bate com a testa no cubo de pedra contíguo, desfalece. Indignado, o índio parte o nariz a um elefante estacionado.
Acaba tudo num lugar longínquo, que na cidade não há urgência pediátrica. Nem clínica veterinária para bichos de grande porte.
In A Voz de Azeméis, 2007, Augusto Baptista
terça-feira, 8 de maio de 2012
segunda-feira, 7 de maio de 2012
domingo, 6 de maio de 2012
Nome nenhum
Olhou a parede no cotovelo do prédio, por um quase acaso. Conhecia muito bem a pequena cidade, jamais precisara saber o nome das ruas. Lançado o olhar, perdeu-se. E teimou na busca de uma placa, inscrição, referência, nomeação do lugar.
Neste entretém, deu em discorrer na ordem obtusa que nos impõe mensagens ao nível dos olhos, quando se não quer; nos obriga a catar alturas, quando se procura.
E partiu sem destino, sem rota, por avenidas, vielas. Farejou cotas altas, em muros, frontarias. Não reconheceu um nome, alguém da sua juventude, por ali pendurado. Como se uma vontade quisesse apagar da memória esse calendário, essa urgência de luta e cultura.
Talvez um quelho, esquina, umas escadas redondas, talvez um beco acolhesse a luz de um nome familiar, cúmplice. Ensaiou perguntar. Mas por ali quem passava, visivelmente, tinha mais que fazer.
In A Voz de Azeméis, 2007, Augusto Baptista
sexta-feira, 4 de maio de 2012
quinta-feira, 3 de maio de 2012
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