Neste espaço de fábricas, muros, vedações, prédios, moradias, cavalgado por automóveis com gente veloz, neste espaço que nada diz de outrora, nada diz dos melros de há uns anos por aqui, cães a cantar ao coelho, galinholas gordas e petos reais, bandos nutridos de abetoninhas no Inverno, texugos, doninhas, grilos, leituga tenra, campos de lavoura e gado a cobrirem tudo, neste espaço que nada diz das legiões romanas a empoeirar o Sol, gemido de rodas cansadas, estandartes, cascos de bestas suadas, neste espaço, enfim, a sublime sobrevivência da automotora que nos chega a apitar, roufenha, na linha férrea, ao fundo.
quarta-feira, 30 de junho de 2010
Sedimentos
Neste espaço de fábricas, muros, vedações, prédios, moradias, cavalgado por automóveis com gente veloz, neste espaço que nada diz de outrora, nada diz dos melros de há uns anos por aqui, cães a cantar ao coelho, galinholas gordas e petos reais, bandos nutridos de abetoninhas no Inverno, texugos, doninhas, grilos, leituga tenra, campos de lavoura e gado a cobrirem tudo, neste espaço que nada diz das legiões romanas a empoeirar o Sol, gemido de rodas cansadas, estandartes, cascos de bestas suadas, neste espaço, enfim, a sublime sobrevivência da automotora que nos chega a apitar, roufenha, na linha férrea, ao fundo.
terça-feira, 29 de junho de 2010
segunda-feira, 28 de junho de 2010
O homem que escalou as nuvens
Trepou montanhas, trilhou cordilheiras, subiu montes, montou picos. Pisou toda a Terra em cota alta. Vencido o repto derradeiro, olhou o céu. E percebeu nas nuvens, corpos fugidios, vaporosos, uma mofa libertária rente ao Sol, a sombra a enterra-lo no chão da cumeada.
Traquejado no desempenho das alturas, deu-se ao estudo do novo desafio. Agachado, para não desconfiarem, aprendeu nomes, anotou rotas, analisou hábitos e costumes, desenhou volumes, traçou planos para assaltar as aéreas e indómitas naturezas transumantes.
Chegada a hora, ascendeu a um cabeço apropriado. Manhãzinha, entre fiapos nebulosos, surpreendeu – iluminados – lãzudos dorsos a levitarem distraídos no baixio. Farejou os ventos, escolheu a presa, saltou-lhe ao manso corpanzil. Interminável, a ascensão foi depois, em colo fofo, brincadeira de menino.
In o homem que, Augusto Baptista
domingo, 27 de junho de 2010
sexta-feira, 25 de junho de 2010
O homem que arrombou a livraria
Cavalgada
A tarde escalda. Silenciosa, a matilha abandona o mercado e galga sem pressa a ladeira. São uns nove, talvez mais, entre homens e mulheres. Elas: saia sobre o comprido, casacão, lenço na cara; eles: grossa samarra, bota de atanado, gorro de lã.
Gente estranha.
quinta-feira, 24 de junho de 2010
Uma vida sem pontuação
In O caçador de luas, Augusto Baptista
Veredicto canoro
In O caçador de luas, pág. 116, Augusto Baptista
quarta-feira, 23 de junho de 2010
O homem que sopra música pelos dentes
O homem que preserva velhos hábitos
terça-feira, 22 de junho de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
segunda-feira, 21 de junho de 2010
O homem que é um viajante compulsivo
O homem que vem à rua respirar ar puro
sábado, 19 de junho de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
- E para beber?
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 44, Campo das Letras, Augusto Baptista
quinta-feira, 17 de junho de 2010
O homem que fechou os olhos
O número das facas – Suzy no arremesso, Mark na fronteira da morte – é o ponto alto das exibições no Bolero Circus. A cada lançamento, Suzy, esfusiante, emite um estrídulo ih!, que, a contrario das trovoadas, antecede o raio. E o respeitável público oh! escondido atrás das mãos, sente a lâmina cravar-se profunda no tabuado, rés a Mark, corpo colado ao alvo.
A cada expiração de alívio, novo pesadelo: Ih!, o arrepio, a faca, o respeitável público oh!, a morte a bordejar Mark. E logo o alívio. O breve alívio que antecede oh!, ih!, o arrepio.
Suzy e Mark fazem parelha há anos, no circo e na vida. Frios profissionais, aprenderam a não transportar para cena os dramas caseiros. Mas como pode ela esquecer nesta noite, faca a saltar-lhe da mão lívida, como pode ela esquecer nesta noite, faca a saltar-lhe da mão trémula, o envolvimento dele com a trapezista! A resposta, objectiva, está na cercadura letal que desenha o contorno quase completo de Mark grudado à superfície do alvo, braços estendidos, pés afastados.
Falta uma faca para que o número termine, a música deflagre. Resta o arremesso derradeiro, o do remate, a faca que há-de selar a junção interior das duas coxas, lâmina apontada ao exacto ponto, abaixo da breve proeminência que o sexo naturalmente alimenta nas exíguas vestes de Mark.
Respiração suspensa, ouve-se um rufo, um aflito rufo de tambor.
In o homem que, edições gatopardo, págs 10,11, Augusto Baptista
quarta-feira, 16 de junho de 2010
O Caçador de Luas
terça-feira, 15 de junho de 2010
Historinhã
In O Caçador de Luas, pág. 17, Augusto Baptista, edições gatopardo
Encruzilhada
O velho cidadão tinha um pensamento bíblico, de certo modo: tendia para as parábolas. Inquirido sobre o tempo alegorizava. Perguntado sobre o lugar divagou: Os gafanhotos chegaram em bando compacto e logo se juntaram aos outros no desfrute. Desde aí a aldeia se fez vila e assim sucessivamente. Sob o lema ‘Tudo pela ocupação, nada contra a concórdia’, as ruas foram baptizadas com nomes velhos e o semáforo posto a funcionar na medida do possível. Os buracos passaram a ser tapados ao ritmo conveniente, que todo o esforço oficial se concentrou nas variantes. E na poda das árvores, pelo tronco. A contemplação foi declarada uma desnecessidade, idem os livros, as salas de espectáculo, as magnólias proibidas de sujar o chão com pétalas, nas manhãs de Março. E, durante todo o ano, a ninguém foi consentido olhar as estátuas, de frente. Também de trás. As nuas. Que nada consta quanto às outras. Aos habitantes de todas as idades e condições foi autorizado um giro, sem abusos viciosos, numa das muitas montadas disponíveis: cavalos, elefantes e congéneres. Já expressamente vedada está, às senhoras, deambulação com sapato de salto alto pela zona empedrada, para não ferir o pavimento e as juntas pedregosas. Por fim, o insigne cidadão sobre o pedestal, no largo, foi lateralizado. Para não estorvar.
Antes que o sujeito de passagem, que tudo ouvira em silêncio, algo dissesse, o velho cidadão concluiu: Pergunta-me meu caro, bem vejo, porquê não apelar a um bando de pardais que, de uma vez, extermine a praga, os gafanhotos? E depois da engorda, me diga, quem comeria os pássaros?
In Histórias de passagem, Augusto Baptista, http://reporter.canalblog.com/
segunda-feira, 14 de junho de 2010
domingo, 13 de junho de 2010
O homem que vê à distância
sexta-feira, 11 de junho de 2010
quarta-feira, 9 de junho de 2010
Histórias de passagem
Cirandou pelas ruas principais. Passou por um ou outro café, viu amigos, perdeu-se em espaços que lhe recordaram a meninice.
O jardim era então o centro do mundo. Por altura das festas, a comissão mandava ali instalar um coreto e, pela tarde, arrancavam os concertos da banda. Felicidade era então uma realidade tangível, a significar marcha militar escutada de pé, à sombra das árvores frondosas. Nas noites de Verão havia canções, discos pedidos, animação de cabina sonora. E as famílias andavam naquela ribalta às voltas. Até estontearem e irem para a cama dormir.
Em certas noites, nas costas do jardim, havia bailes selectos, função de gente seleccionada, palco no salão sobre as arcadas. As senhoras e as meninas iam de vestido comprido a arrastar pelo chão, chapéus de aba opulenta e véu; os cavalheiros, casaca, luvas, laçarote. A fumar. E os excluídos iam ver, amontoados em alas à entrada, a estrugir de ciúme.
Ácidas lembranças.
Hoje o jardim é centro de nada. Mataram-lhe a função romântica. Despiram-no do chilreio dos pássaros em bando, à tardinha. E, do aconchego das árvores, resta ironia: "Respeitar e conservar as plantas é dever de nós todos. Não maltrateis as árvores nossas amigas".
Olhados de soslaio por uma fulana gorda, nádega resplandecente a sobressair entre azulejos, agora sobrevivem às vezes por ali alguns mais-velhos à conversa, sentados nos bancos. Outros, isolados, disputam imaginárias sombras, a ver passar o tempo. A ver passar o tempo. A ver passar o tempo. E entre todos paira um fulano andrajoso, descalço, a pedir. Toca umas composições melancólicas, sopro grave expelido num engenho de boca larga. Faz recortes, maravilhas com tesoura, papel. Sem que alguém repare, lhe dê importância, esmola. O homem sorri, prossegue o seu destino e sorri. Sem ressentimentos.
In Histórias de passagem, http://reporter.canalblog.com/, Augusto Baptista
terça-feira, 8 de junho de 2010
Código misterioso
Quando a mensagem, concisa, inopinada, lhe caiu na mesa, papel vagamente perfumado, o jovem cripto correu a decifrá-la. Lançou mão às chaves, aos processos, às grelhas mais secretas. A tudo a cifra resistiu, inviolável. Sem conseguir desvendar o mistério, envelheceu. E nunca perguntou, sequer à Ana, mesminho ao lado, que raio queria dizer aquele código, insondável sigla de cinco letras: amo-te.
In O Caçador de Luas, Augusto Baptista, gatopardo 2003
Nome nenhum
Olhou a parede no cotovelo do prédio, por um quase acaso. Conhecia bem a pequena cidade, jamais precisara saber o nome das ruas. Lançado o olhar, perdeu-se. E teimou na busca de uma placa, inscrição, referência, nomeação do lugar.
Neste entretém, deu em discorrer na ordem obtusa que nos impõe mensagens ao nível dos olhos, quando se não quer; nos obriga a catar alturas, quando se procura.
Partiu sem destino, sem rota, por avenidas, vielas. Farejou cotas altas, em muros, frontarias. Não reconheceu um nome, alguém da sua juventude, por ali pendurado. Como se uma vontade quisesse apagar da memória esse calendário, essa urgência de luta e cultura.
Talvez um quelho, esquina, umas escadas redondas, talvez um beco acolhesse a luz de um nome familiar, cúmplice. Ensaiou perguntar. Mas por ali quem passava, visivelmente, tinha mais que fazer.
In Histórias de Passagem, Augusto Baptista, http://reporter.canalblog.com/
sábado, 5 de junho de 2010
A dúvida
In O Caçador de Luas, Augusto Baptista, gatopardo 2003
quinta-feira, 3 de junho de 2010
A testemunha
Presencia tudo: vê Tãozinho sacar o maço do bolso paterno, vê o isqueiro, vê as lentas baforadas, a tosse. Ao descobrir-se espiado, o menino sobressalta-se:
– Não contas ao papá. Contas?! – gesto corruptor, propõe uma passa.
A testemunha recusa, brusca e muda: péssimo presságio! Esgazeado pelo fumo, Tãozinho pousa o cigarro na borda da mesa. E, mãos ambas, salta ao pescoço do papagaio.
In O Caçador de Luas, Augusto Baptista, gatopardo 2003
quarta-feira, 2 de junho de 2010
O homem que morreu duas vezes
Murilo comprou uma tv gigante, ecrã panorâmico, 360 graus. A arrojada iniciativa obrigou a obras em casa, impôs sacrifícios: dramática redução da área habitável, renúncia de dispensa, varandas, WC… Em suma, perdeu em lar, ganhou em amplitude televisiva, abertura ao mundo.
Agora, tem Pequim à distância de um imperceptível movimento do indicador, Toronto na fracção de um clic, Paris ao alcance de um dedilhado breve do polegar, cosmos, fundos marinhos, filmes, tempestades, num relampejante esgar da falangeta.
Longe a exígua janela para espreitar a rua e pouco mais. O universo, em todos os sentidos, é-lhe hoje instantaneamente convocável. Murilo arribou, enfim, à ultra-sofistificação tecnológica que lhe dá realidade, a toda a volta. E alguns contratempos: nas manifestações, por exemplo, os insultos, os protestos, chovem-lhe de todos os lados; nos teatros de guerra, balas, emboscadas, fogo de artilharia, surpreendem-no de frente e à traição.
Pedem-se-lhe nervos de aço!
Cercado pela extrema factualidade televisiva, texturas parabólicas em pulsante nitidez, Murilo é percorrido pelo cheiro a pólvora, o medo, sangue a golfar dos moribundos, a encharcar a alcatifa, entre clamores, agonia, o silvo das balas rente à cabeça, ele encurralado atrás do sofá e, logo, uf!, a savana, os elefantes, o hálito azotado da urina do macho dominante, ele a progredir cauteloso contra o vento, inopinadas, viscosas, as excreções da manada e, nesta aflição madrugadora, o botão salvador, o suor enjoativo dos cowboys, pistoleiro dedo no gatilho – dispara, não dispara – ele, mãos no ar, aliviado, a salvo do horror paquidérmico.
Mas, o que custa, o que mais lhe custa, é entrar em directo nos telejornais, ser jogado para um qualquer contexto, logo envolvido. Particularmente acidentado, o último fim-de-semana: emboscado em Bagdad, vê-se embrulhado numa sublevação prisional em São Paulo, escapa a um ataque israelita na Palestina, livra-se in extremis de casar com uma velha mestre-escola em Las Vegas, perde uma fortuna num casino da Birmânia, colhido na Monumental de Madrid esvai-se nos braços da Sharon Stone, ambulância a caminho do hospital, tiloli!! , tiloli!, irrompe uma voz aflita:
– A casa de banho?! Rápido, Murilo! A nossa casa de b… – E, supreendendo o pungente desenlace na ambulância, demenciada: – Oh! Que fazes aí no sofá com essa mulher?! Diz-me!
Em contra-luz, Murilo entreviu uma figura familiar à porta do telesalão, vagamente Carlota, a consorte, bolseira em Paris, inexplicavelmente ali, ele nos braços da Sharon a caminho do hospital, sem tempo para explicar, Carlota a desfocar-se agitada, mãos de repente sacudidas por um estampido rubro.
In O caçador de luas, págs. 106, 107, Augusto Baptista, edições gatopardo
terça-feira, 1 de junho de 2010
Dos tempos
Os dias que correm produzem gente esquisita, pensa o homem que sábado bem cedo demanda transporte para a terra, olho no casal de idosos: ele, óculos escuros, destes de feira, que de tão grandes o aparentam a um moscardo negro; ela, andar acocorado nuns sapatos muito altos, esquelética saia curta, a mostrar o umbigo tatuado, a cueca.
De repente, dobra a esquina um fulano de fato claro e chapéu, magrote, já na casa dos setenta. As mãos para a frente sugerem segurar rédea forte, ele montado em fogoso corcel invisível, insubmisso, tais e tantas as piruetas, cabriolas e volteios desenhados no passeio.
Mais à frente, na entrada do Teatro Nacional, um fulano dorme num colchão de bebé: pés no fofo, a cabeça sobre a pedra. Outro ressona, sentado, caixote de cartão encarapuçado até à cintura. E um cachorro muito preto, enroscado no frio, na magreza, olha guloso a gaivota madrugadora que devora uma pomba, quente ainda.
– Uma desgraça, a Batalha – observa, a caminho da camioneta para a feira dos 4, a mulher gorda, de muletas. Atrás, nada diz a acompanhante, cabeça enterrada num fardo de bugigangas. A mascar chiclets.
in Histórias de passagem, Augusto Baptista