segunda-feira, 31 de maio de 2010
domingo, 30 de maio de 2010
Paixão
In O caçador de luas, Augusto Baptista, edições gatopardo, 2003
Controvérsia
tac! traraaaac! tac!
taac! tac! traraac… taac!
traraaaaaaac! tac!!!
Parou, mão no bolso, a desafiar. Ela soltou os pés, ao rés do salão
pac! prarac… pac! praraaaaaaaaac! pac!!!
Sintética eloquência! Ele ajoelhou, teatral: cabeça baixa, em jeito de rendição. Num repente, contra-atacou
tac! trarac! tac! tac! traraaac! tac! tac!
trarac... tac! tac! trarac! tac! tac! trarac!
tac!
Ela sorriu num leve volteio de anca, fraseou
pac! prarac! pac! prarac! pac! praararac! pac! pac!
pac! pac!
prarac! pac! pac! pac!
Chão ainda a fumegar, contrapôs ele
tac! trarac! trararac! tac! tac!
tac! tac! traraac! trarac! tac! tac!!!
Ela não se calou
pac! prarac! pac! parac! pac! praraac!
pac! pac! parac! pac! pac!!!
E a discussão não mais parou
tac! trarac! pac! parac! tararac! tac! pac!
pac! tac!
pac! tac! pac! tarac! pac!
tac! pac! tarac! tac! parac! tac! pac!
tac!!!
pac!!!
tac! tac! tac!
parac!
tac!
pac!
pac! tac! tac! pac! praararac! pac! tac!
In O caçador de luas, Augusto Baptista, edições gatopardo, 2003
segunda-feira, 24 de maio de 2010
domingo, 23 de maio de 2010
Projecto aéreo
Em terra, nó firme cerca o dente cariado; rumo ao céu, o foguete torna iminente o instante libertador.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Em passeio de família, a mão-de-vaca mais o pé-de-boi foram dar uma volta com a mãozinha-de-vitela. Onde vão, onde não vão, foram ao talho, para conhecer. E lá entraram, todos os três, o pé-de-boi à frente, as mãos atrás.
Para quem até aí só conhecera o mundo verde, a vida tinha ali a cor complementar. Entre véus vermelhos, carnes vivas, miudezas, vitualhas, entrecobertas com paninhos e toalhas cor-de-sangue.
A mãozinha-de-vitela na sua inocência por ali andava, irrequieta, a saraquitar. Por perto, a mãe. O pai ao largo.
A páginas tantas, deu no olho à mão-de-vaca, grandes, dois olhos de carneiro mal morto, bicho careca. Estava no gancho, a espreitar! Dependurados, penduricalhos.
Depenados, crista alçada, os frangos, mais de vinte, esticados no galanço. E os coelhos, grandes, gordos, tudo pelado, ao monte, carne com carne. Que sítio é este? E a mão-de-vaca cingiu a mãozinha-de-vitela.
Piscar venéreo, o néon. Tesos, os chouriços. E um presunto, rançoso e negro, barba por fazer, curtido em tinto e fumo, partes barradas com colorau, venal, sabido, a acenar com os presunhos… Olho vigilante, a mão-de-vaca, safanão na mãozinha de vitela: Não se mostra os dentes a desconhecidos! E cornos no ar: Onde pára esse pé-de-boi?!
Vidrado nos tons de vermelho, no desfrute da cor, ruminante, o pé-de-boi deambulava solitário. Eléctrico, acorda num sobressalto de mão familiar: Anda, isto não é sítio para a mãozinha. E entredentes: Depois falamos…
Em tropel, iam já a sair pela soleira, afligidos agora por um mesmo mau pressentimento, quando uma mão sinistra as unhas se lhes crava. Vermelho vivo, a todos três. E os mete numa saca aos xadrezes.
In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista
O rosto e a máscara
Saudáveis, risonhos, felizes por cumprirem os desígnios celestes de morrerem por nós, frangos, vacas, cabritos, porcos, linguados, corvinas, esperam-nos no talho, peixarias, restaurantes, na impaciência de serem comidos, devorados por nós. Mas será este o rosto ou será esta a máscara da tragédia?
Fotografia e texto: Augusto Baptista
Que prazer, que alegria no mundo haverá maior do que a de morrer por nós? — isso nos parece dizer a ampla figuração que anima as montras e o interior de muitos talhos, restaurantes, peixarias. Mas seria suportável o pesadelo de encarar a procissão de morte e carnificina que, para viver, cada um de nós arrasta atrás de si?
Preferível é imaginar mortos felizes, corpos que se entregam, solidários, e que nos exigem a gostosa obrigação de os trincharmos. Mas sendo a morte um momento, um processo tão dramático, acreditar que os outros morrem alegres por nós, serenamente, só pode ser um fingimento, um modo de iludir a culpa, o pecado (ou não) de matar.
Na Vagueira, anos 90, juraria Maio, talvez Junho, entregue à companha do ti João da Murtosa, fui ao mar. Lançada a rede ao largo, inesperadamente os pescadores ergueram-se no pequeno barco em meia lua. E quando esperava eu um gesto soberano, curvaram-se. A rezar. Louvor por estarem vivos, apelo ao sucesso do lanço? O êxito dos homens, a aflição dos bichos; a vida de uns, a morte de outros.
Pescar e pecar, conceitos próximos, mesmo quando do pecado não há entendimento ou nele não se acredita, como o pescador de Hemingway: "Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo enquanto estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?». Pecado ou não pecado, «tudo mata, de uma maneira ou de outra», reconforta-se o protagonista de “O velho e o mar”, enleado num jogo ambivalente e sem saída: «Pescar mata-me, exactamente como me mantém vivo».
Nós e os outros, viver e matar, culpa, oração: tema de escritas. Na obra "Palomar", Italo Calvino dedica ao universo do talho a narrativa "O mármore e o sangue". «As reflexões que o talho inspira a quem lá entra com o seu saco de compras implicam noções transmitidas ao longo dos séculos em vários ramos do saber» incluindo «os rituais que nos permitem aplacar o remorso de pôr fim a outras vidas para nutrir a nossa».
No palco de sangue, o senhor Palomar permanece aí como num templo e, «apesar de reconhecer na carcaça pendurada do boi a pessoa do seu próprio irmão esquartejado, mesmo reconhecendo no corte do lombo a ferida que mutila a sua própria carne, sabe que é um carnívoro, condicionado pela sua tradição alimentar a recolher num talho a promessa da sua felicidade gustativa, a imaginar, observando estas fatias avermelhadas, as estrias que a chama deixará nos bifes na grelha e o prazer do dente ao cortar a fibra tostada».
Entre a alegria e o temor, o desejo e o respeito, o egoísmo e a compaixão, «o estado de alma de Palomar na bicha do talho» equivale ao «que outros talvez exprimam na oração».
Um porco de cartola
«Tudo o que vive e se move servir-vos-á de alimento. Entrego-vos tudo, como já vos havia entregue os vegetais», assim falou Deus a Noé e seus filhos, depois do dilúvio.
Apesar do salvo-conduto omnívoro do "Génesis", outros Livros do Antigo Testamento introduziram condicionantes, dividindo os animais em puros e impuros, nos que se podem e nos que não se podem comer; restrições entretanto levantadas em vários textos do Novo Testamento.
Em suma, o corpo bíblico dá luz verde para trincar quadrúpedes (sejam ou não ruminantes, tenham ou não casco fendido), peixes (com ou sem escamas e barbatanas), insectos, bicharada rastejante. Enfim, não há seres «abomináveis», «animais impuros». Haja apetite e, sem entrave da Bíblia, não há bicho que escape ao destino da faca e garfo.
Este manto cultural e religioso é transferido para a própria bicharada, ficcionando os homens um mundo cor-de-rosa em que porcos, patos, congros, perus, bois, garoupas, ovelhas, vacas, o reino animal enfim, solidário, altruísta, agradado e obediente à palavra de Deus, nos espera risonho, saudável, feliz, nas churrasqueiras, nos restaurantes, nos mercados.
No Bolhão e no Bom Sucesso, velhos mercados do Porto, e no mercado de Matosinhos, a presença de referentes religiosos constitui-se dominante. No Bolhão, entrada Sul, e na escadaria do Bom Sucesso há nichos em louvor de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora Auxiliadora (a que também ouvi chamar, por irónica corruptela, Assoreadora) em cuja base sempre vi círios a arder.
Sob esta matriz de generalizada religiosidade, dir-se-ia que o climax devocional reina nos postos de venda da carne e do peixe. Em muitos deles, erguem-se discretos altares com santos, santas, terços. Às vezes lamparinas, velas, marcam presença. E entre chouriços, carcaças de bezerro, orelheiras, não raro espreitam figurinhas de papel evocando Nossas Senhoras, Corações de Jesus...
A "Salsicharia Sol Alto", com presença no Mercado do Bom Sucesso, editou calendários para 2002 com diversas ilustrações religiosas: aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos, menino Jesus ao colo de Santo António, S. José mão no ombro do jovem Jesus. Na base das imagens, ladeando o nome da salsicharia, jaz, discreto, um porco desenhado com cartola. Dentro de um caldeirão.
A coexistência entre o religioso e o humor exprime-se aliás no espaço de alguns talhos e peixarias, dentro dos mercados referidos. É frequente encontrar bonecada de plástico ou de barro, porcos, vacas, galos, tudo animado, sorridente, onde também reinam, sérias, presenças sacras, e escorre sangue.
Ninguém se escandaliza, espanta, protesta ou descobre sacrilégio na relação sagrado-humor. Componentes integradoras, serão pólos de um processo de duplo apaziguamento, dois modos de esconjurar a culpa: desdramatizando a morte; abençoando-a.
Se a morte com sentido social, visando a alimentação humana, suscita ponderações, que dizer dos chocantes morticínios em massa de animais considerados excedentários, em obediência a determinantes de lucro e a jogos de mercado? Isto enquanto extensas zonas do planeta, pessoas aos milhões, crianças, são fustigadas pela fome. Mais do que pecado, este é crime sem perdão.
A fome no mundo, que também nos afecta, não torna sustentável preconizar uma radical e imediata alteração de hábitos alimentares, banindo da ementa carne, peixe — embora, para populações carenciadas, carne e peixe sejam quimera. Também o peso cultural, o modo como por tradição nos alimentamos, torna difícil mudar.
Mas um dia terá de ser. E bom seria que todos nós, súbditos do cozido à portuguesa, já neste nosso tempo optássemos por uma alimentação menos inquietante.
Mercado do Bolha: Nª Sª da Conceição
Entrego-vos tudo
Diz a Bíblia (Génesis, capítulo 9, versículos 1 a 3) que depois do dilúvio «Deus abençoou Noé e os seus filhos, dizendo: "Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Todos os animais da terra vos temerão e respeitarão: as aves do céu, os répteis do solo e os peixes do mar estão sob o vosso poder. Tudo o que vive e se move servir-vos-á de alimento. Entrego-vos tudo, como já vos havia entregue os vegetais"».
Entretanto, ainda no Velho Testamento (Levítico, cap. 11, vv 1-47), são longamente caracterizados os animais puros e impuros, os que se podem ou não comer. Noutro livro do Velho Testamento, Deuterónimo (cap. 14, vv 3-21), de volta ao assunto, é recomendado nada comer «que seja abominável», seguindo-se uma relação dos quadrúpedes puros: «boi, carneiro, cabra, veado, cabrito, gamo, cabrito montês, antílope, búfalo e cabra selvagem. Podereis comer também qualquer animal que tenha o casco fendido e que rumine. Porém, há ruminantes e animais com casco fendido que não podereis comer: o camelo, a lebre e o texugo, que ruminam, mas não têm casco fendido. Esses serão impuros para vós. Quanto ao porco, que tem casco fendido mas não rumina, considerá-lo-eis impuro: não comais a sua carne, nem toqueis no seu cadáver».
Dos animais que vivem na água, autorizado é comer só os que têm barbatanas e escamas. «Os insectos que voam» todos devem ser considerados impuros. E, das aves, «não podeis comer o abutre, o gipáeto, o xofrango, o milhafre negro, as diversas espécies de milhafre vermelho, todas as espécies de corvo, o avestruz, a coruja, a gaivota e as diversas espécies de gavião, o mocho, o íbis, o grão-duque, o pelicano, o abutre branco, o alcatraz, a cegonha, as diversas espécies de garça, a poupa e o morcego».
Esta «concepção pesada e formalista» foi abolida no Novo Testamento (Mateus, cap.15, vv 10-20; Marcos, cap. 7, vv 14-23; Actos, caps. 10 e 11), o que corresponde — para desgraça do porco — a declarar todo o mundo animal sob alçada do dente humano. No Evangelho segundo S. Marcos, diz Jesus aos discípulos: «"Não compreendeis que nada do que vem de fora e entra numa pessoa pode torná-la impura, porque não entra no seu coração, mas no estômago, e vai para a privada" (Assim Jesus declarava que todos os alimentos eram puros)».
Todos os nomes
Quem se der ao trabalho de atentar nos nomes, vai surpreender-se com a expressiva associação entre os talhos e o religioso. A propósito, em S. João da Madeira, um exactamente se designa Talho O Templo das Carnes (recentemente mudou para Talho Ângelo Valente). E é espantosa a quantidade de santos e de santas mobilizados para a função, sobretudo no Norte. A título de exemplo: Talho São Caetano, Rio Tinto; Talho Senhor dos Navegantes, Vila do Conde; Talho Senhora de Guadalupe, Águas Santas; Talho Nossa Senhora do Livramento, Braga; Talho São José, Baixa da Banheira; Talho de São João, Funchal; Talhos Nossa Senhora dos Altos Céus, Anta; Talho São Marcos, Trancoso; Talho São Lourenço, Porto; Talho São João Baptista, Almada; Talho São Francisco, Loulé; Talho São Mateus, Angra do Heroísmo. Muitos mais se poderiam citar, um tanto por todo o país: São Gonçalo, São Tiago, São Miguel, São Jorge, São Caetano, Santa Maria, Santa Luzia...
Nomes com ressonância bíblica também se encontram com abundância: Talho Arca de Noé, Vila do Conde; Talho O Dilúvio, S. Romão do Coronado; Talho Natividade, Lisboa; Talho Paraíso, Vila Nova de Gaia; Talhos Boi Doiro, Alijó e Viseu; Talho Vitelo Dourado, Viana do Castelo; Talho Calvário, Valongo; Talho Monte Calvário, Gouveia; Talho da Cruz, Santa Maria da Feira.
Nomes tristes, de Semana Santa, e outros de arrepiar, também os há: Talho Fado, V. N. de Gaia; Talho do Rosário, Porto; Talho das Dores, V. N. de Cerveira; Talho Novo da Saudade, Penafiel; Talho Meia Noite, Lanheses; Talho Alívio, Lda, Perelhal; Talho Desterro, Angra do Heroísmo; Talho O Braseiro, Aveiro; Talho Boa Faca, Delães; Talho Cortador, Matosinhos; Talho Espeto, V. N. Gaia; Talho Rua Escura, Porto; Talho Novo Corte, Bombarral; Talho Réu, Amarante; Talho Central Senhor dos Aflitos, Baltar.
Encontram-se designações refinadas: Boutique de Carnes, Porto; Talho Fina Flor, Moimenta da Beira; Talhos Requinte, Cacém; Talho Carnes de Categoria, Coimbra; Talho Azul, Silves. E há nomes de gente da escrita: Talho Garrett, Porto; Talho Eça de Queirós, Póvoa do Varzim; Talho Antero de Quental, Lda, Porto; Talho de João de Deus, Porto.
E há nomes risonhos: Talho Alegria, Porto; Talho Alegre, Mealhada; Talho Flor da Alegria, Porto; Talho Contente, Castro Verde. Há designações solares: Salsicharia Sol Alto, Porto; Supertalho Pôr do Sol, Lda, Lousada; Talho Varandas do Sol, Esmoriz. Referências a telenovelas também se encontram: Talho Pantanal, S. Mamede de Infesta; Talho O Bem Amado, Lda, Guimarães; Supertalho O Rei do Gado, Viana do Castelo.
Surpreendem-se travos cosmopolitas: Talho Francês, Lda, Lisboa; Talho Alemão, Lousã; Talho Muçulmano, Lda, Lisboa; Talho Londres, Cacém; Talho Paris, Maia; Talho Inglês, Almancil; Talho Oriente, Lisboa; Talho Europa, Figueira da Foz; Açougue Brasil, Ponta Delgada. Há nomes directamente dirigidos ao estômago: Talho Nutritiva, Porto; Supertalho O Tourão, Lda, Caldas das Taipas; Talho Bom Bife, Odiáxere; Talho Colosso, Porto; Talho Bifão, Caldas das Taipas.
Há talhos com nome número: 1, 17, 20, 29, 452, 501... E há donos de talho com apelido: Leitão, Coelho, Vaquinha, Pinto, Perdigão, Baleia, Lampreia, Ruivo, Lagarto, Pisco, Milhano, Raposo, Onça, Pavão, Aranha, Cabrinha, Vitelo.
As peixarias igualmente recorrem a nomes de santos e de santas, mas dir-se-ia com mais comedimento. Abundam evocações oceânicas: Peixaria Maré Alta, Maré Viva, Atlântico, A Onda, Estrela do Mar. E há frequentes diminutivos: Peixaria Rosita, Dininha, Teresinha, Bininha, Bélita, Lotinha, Robalinho, Pescadinha. E, entre todos os nomes, em Albufeira, há a Peixaria dos Olhos de Água.
Se os tubarões fossem homens
Em "Histórias do Senhor Keuner", conta Bertolt Brecht, com ácida ironia e pela voz da personagem K., que «se os tubarões fossem homens» seriam mais amáveis para os peixinhos: «organizariam grandes festas aquáticas porque os peixinhos alegres são mais saborosos do que os melancólicos». Teriam também a sua arte, teatros no fundo do mar «que mostrariam como os peixinhos heróicos e corajosos nadam com entusiasmo em direcção às goelas dos tubarões, e a música seria tão bela que os peixinhos, ao som das notas, precedidos pela orquestra, precipitar-se-iam sonhadoramente na garganta dos tubarões embalados pelos mais encantadores pensamentos».
E haveria uma religião, se os seláquios fossem homens. Uma religião, diz o senhor K., a ensinar que «os peixinhos só começam verdadeiramente a viver na barriga dos tubarões». Nasceria entre os peixinhos uma hierarquia e «os que fossem um pouco maiores, teriam mesmo o direito de comer os mais pequenos» e de zelar pela ordem, tornando-se professores, oficiais, engenheiros. «Para resumir, só se os tubarões fossem homens nasceria nos mares uma civilização».
Nota
A reportagem "O rosto e a máscara" (incluindo os três complementos "Entrego-vos tudo", "Todos os nomes" e "Se os tubarões fossem homens") foi concluída em 2002. Por dificuldade de acolhimento e de publicação na imprensa escrita, o trabalho só agora é aqui editado.
O texto mantém-se inalterado face ao produzido em 2002. As imagens, por descaminho dos originais, foram registadas em 2010 (à excepção da fotografia com os três calendários editados pelo talho Sol Alto).
O contacto agora efectuado para recolha de imagens (Porto e Matosinhos) revelou o encerramento de muitos estabelecimentos (peixarias e, sobretudo, talhos) de tipo tradicional e a abertura de outros, aspecto moderno; revelou grave afectação funcional dos mercados do Bom Sucesso e do Bolhão, pondo em perigo um património também cultural inestimável.
De qualquer modo, prevalecem - mesmo que com menos exuberância - os referentes imagéticos em que assenta a reportagem, como aliás as fotografias publicadas testemunham.
No presente, tal como em 2002, também frequente foi encontrar abundância de figurações exaltantes do potencial físico dos animais abatidos: touros (explosiva corpulência de testículos e cornos), galos (crista vermelho-ardente). Igual exaltação dos atributos físicos da oferta animal se exprime na designação de alguns talhos: Super Talho O Tourão, Talho Colosso, Talho Bifão.
Os novos espaços a que atrás aludimos apresentam-se por norma des-sacralizados, celofanizados, despidos. Alguns deles adoptam uma simbologia estilizada, outros procuram colar-se a mensagens ecológicas.
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Dos cheiros
Quando chovia, todo o mundo ia ver derrapar os carros. Os que mais dançavam eram os mais cautelosos, os que mais devagar se faziam à ladeira. Ziguezagueavam no paralelo besuntado e, à boca do armazém, quase a vencer o íngreme percurso, navegavam sem norte. Um suplício. Um longo suplício de carros desgovernados a lamberem a estrada, berma a berma. Até se deixarem escorrer. Vencidos.
O povo ria. E a humilhação durava horas. Durava, enfim, o tempo que cada espectador pudesse, que a saga prosseguia quando, por força de afazeres, entre a assistência alguém desarvorava.
A cheirar a azeite.
A terra, para ele a terra é também memória. Esta memória. Memória de este e de outros odores, impregnados na carne. Rasto de vinho tinto e bagaço, na loja do Marcelino, no quelho. Aceno de eucalipto e mimosas na Escola Livre, quando os professores faltavam e a malta ia para ali jogar a bola. Cheiro a chuva, a terra molhada, a pão, a campos lavrados. Primavera. Aroma de flor de laranjeira, tília, na avenida, no jardim. Um remoto fumo acre vindo da casa do ferrador, velho Pote, ferraduras em lume a estrugir na pata dos bois, dos garranos.
A terra, a sua terra, perfume de soalho lavado, sabão amarelo. Leite mungido, jacto fino, sonoro, apontado ao canado. Um sinal de café moído na loja do Cipriano Martins. Presença de castanha assada na esquina do Pintor, Casa D. Hóspedes, anunciada assim na parede. Zamacóis. Brisa de vitela assada no Pechão. Padas de Ul, inchadas padas de Ul com fiambre, aprontadas pelo senhor Augusto, no Flecha.
A terra, a sua terra, cheiro velho a procissão. Pés penitentes a pisar os verdes sobre a estrada, mulheres com mantilhas pretas, homens submissos, anjinhos imaculados, todos levados na cadência da banda, das orações, das velas tremeluzentes a agigantar a noite, as sombras, os medos.
A terra, a sua terra, longínqua respiração. Hálito quente e bom do avô, do seu velho avô no Inverno, a bafejar-lhe o peito. A trespassar-lhe a roupa. A vazar o tempo.
In http://reporter.canalblog.com/ Augusto Baptista
Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias
Nasceu e cresceu assim. E assim se habituou a viver, autónomo, constante precisão de gestos e alerta de sentidos. Aprendeu a ler os sons, os cheiros. E a ver por eles e pelo tacto da bengala. Um código de sinais difícil de explicar.
Pela manhã, como sempre, saiu de casa. Na rua, a cidade a ferver num desassossego de carros, autocarros e gente, desencontro de caminhos e destinos. E ele a bengalar o chão, passo travado, atento, no passeio. De súbito, choque brutal, um clarão! Relâmpago de luz plena. Punhal de fogo no fundo dos olhos.
Projectado sobre o asfalto, enovelado em raios de claridade, caiu, olhos vidrados. Via! Agora via! Nítidas as formas, as tintas da sua cidade tacteada. Brancas de cal, caras sobre ele. Olhos de espanto azul, castanho, negro. Coloridos, tão lindos, os olhos. Mãos debruçadas num socorro. Dedos nervosos, tisnados de tons impacientes. Chamem o 112! Bocas abertas em gritos de lábios róseos, cor inesperada: Mataram o ceguinho! Os cabrões do carro mataram o ceguinho e puseram-se nas putas!
Ele, como tombou, ficou. Olhos pasmados para o céu. À sua volta, bando nervoso, as jovens do colégio ali de frente. E ele a topar, passarinhantes, exaltadas, pernas de seda. A mirar quietinho pérolas de luz em excitação de fogo. A micar, por baixo das saias desacauteladas, coxas tenras. Carne pele de veludo a levitar em arco-íris de langerie tranparente. Clara, branca, langerie transparente. Sempre mais clara, mais luz, mais transparente. Luz absoluta. Luz original.
In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista
sexta-feira, 14 de maio de 2010
HUMOR DAS MULTIDÕES
Razões editoriais tolheram a iniciativa, quase no ovo. Mas o contratempo não travou o paulatino acumular de produção. E, a páginas tantas, tinha um naipe de situações que daria até para fazer um livro. Fazer um livro?! Decidi-me.
Em má hora: a falta de apoios, a inabilidade no tratamento destas coisas, tudo isto obrigou a palmilhar labirintos sisudos. E a brincadeira depressa perdeu a piada.
Num beco sem saída e como não sou homem de desistir, recorri à publicação mental da obra. Reuni desenhos, paginei, cuidei da capa e dos detalhes, esmerei no aspecto gráfico e, cerebral, accionei a edição.
A primeira tiragem, à mesa do café, entre amigos, rapidamente se esgotou. Depois outra, outra e… Consumi-me em edições mentais, sem conseguir dar vazão às encomendas. E fui obrigado a recorrer à impressão clássica.
Aqui está Humor das Multidões, versão papel, sem o fulgor da utopia, sem a luz primordial do livro-pensamento. Com palavras negras, desenhos baços, densidade de chumbo, eu sei. É sempre assim, dizem-me, quando as ideias se concretizam.
Face ao irremediável, resta-me a esperança de que esta publicação, concreta e parda, se possa redimir do pecado do corpo. Caminho de redenção que talvez passe por arrancar de si, leitor, um irreprimível e mesmo que levíssimo sorriso. Sinal definitivo de que existimos.
In Humor das Multidões, 2000, Augusto Baptista
quarta-feira, 12 de maio de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Vida madrasta! Ele, fisicamente parecidíssimo com o patrão, na empresa não passava de um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.
Resolveu vingar-se da má sorte. Gizou plano. E, por um dia, fez-se passar pelo outro. Resultou: senhor doutor para cima, senhor doutor para baixo, reuniões, salamaleques, secretárias a sacudir-lhe a caspa do casaco.
Um dia em cheio! Praticamente só ensombrado por um pequeno pormenor: “Imperdoável ele ter faltado sem justificação, senhor doutor!” – justiçava o chefe de pessoal.
Ainda tentou relativizar o caso, dar uma nova oportunidade ao homem. “Seria um grave precedente! Há normas!” – inflexível, o burocrata.
Não havia volta a dar-lhe. E teve mesmo de despedir o faltoso. Um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.
In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista
terça-feira, 11 de maio de 2010
O homem que engole aço
O homem que se abotoou com umas massas
TANGRAM
Tangram é jogo de magicar, expressão de magia e de pensamento, nascido na China, a partir dos primeiros anos do século XIX, conquistou o mundo.
Formado por sete figuras geométricas susceptíveis de tantas conjugações quantas a imaginação consinta, o puzzle tem regras mínimas: a utilização para cada caso das sete peças que o integram, sem sobreposições.
Simples, na aparência, o tangram cativou criadores, artistas, intelectuais. Gente famosa. Elixir para mentes geniais, foi jogo eleito de Napoleão, apaixonou Faraday, Edgar Allan Poe, Hans Christian Andersen. E o elenco dos praticantes de nomeada poderia crescer, também com gente da actualidade, tantos em todo o mundo os seus apaixonados e cultores.
Jogo de solitários, que não de solidão, o tangram abre desafios aquietantes, como quem, abstracto, olha na lareira o fogo. Ou, atento, observa um aquário, serena suspensão do tempo: espécie de viagem de Verne.
Para os que gostam de partilhar, o jogo agasalha a cooperação, nele cabem vivências díspares para, em reflexão conjunta, conjugando raciocínios, se poderem ultrapassar desafios de improvável vencimento individual.
Os problemas com que se tenha de deparar, alguns difíceis, outros nem tanto, não deve o leitor desistir à primeira. Como na vida, teime, insista, persevere. Vire e revire as peças, sistematize as abordagens. Pense devagar, repense sem pressa. Com ironia, ao jeito de Alexandre O’Neill, mãos entretidas “num tempo fértil”, sem pudor do absurdo:
Por que não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p’la manhã?
In Tangram-Humanas figurações, Augusto Baptista, 2007
segunda-feira, 10 de maio de 2010
Pedras Parideiras
Texto de Augusto Baptista
É um fenómeno espantoso, talvez único em todo o planeta. Na aldeia de Castanheira, perto de Arouca, em plena serra da Freita, aqui em Portugal, há pedras a parir pedra. O povo da região chama-lhes as pedras parideiras. E há quem diga que elas parem desde o princípio do Mundo.
"Parecem pedreiros. Trazem martelos e andam por aí a partir pedra. Até os muros desfazem. E nós não podemos fazer nada". António Tavares José, presidente da Junta, anda desolado. Principalmente ao fim-de-semana, em Castanheira é o fim do mundo. Vem gente de todo o lado à cata das pedras parideiras. "O pessoal podia vir aqui ver, mas deixar a pedra quieta. Assim, até parece que andam a destruir a povoação. Levam toda a qualidade de pedra. Chegam a carregar carros e furgonetas", desabafa.
À serra da Freita, cada vez desagua mais gente. São carros, excursões de curiosos, ávidos de ver e de ter a pedra que pare. "Até já mete nojo ver o pessoal todo a apanhar pedras. E não há interesse nenhum em levá-las. Elas fora daqui não parem. E acho bem, afinal aqui é que é a terra delas", opina o homem da Junta.
O povo da aldeia indigna-se com o que vê, mas sente-se impotente. "Não podemos ir à frente. Temos de ter uma iniciativa da Câmara ou de alguém. Ainda não houve entidade nenhuma que se opusesse e nós não podemos fazer nada sem sair uma lei. Não podemos pôr aí uma placa "Proibido levantar pedras".
A febre das pedras parideiras está a perturbar a pacatez do dia-a-dia serrano. Os curiosos que aqui chegam não sabem ao certo ao que vêm. Procuram não sabem bem o quê. Perseguem uma miragem. Apostam na ilusão de surpreender o supremo momento de nascer. Querem ver a pedra parir. O imaginário popular das gentes serranas ajuda ao sonho. "Aqui está uma pedra, seja grande, seja pequena, pare sempre, com o tempo. Isto é assim desde o princípio do Mundo. Sempre a parir".
Na Castanheira, a pedra-mãe, a pedra-parideira, é o granito. Ventre de onde nascem pequenas pedras arredondadas, paridas em fantásticas gestações milenares. "As jogas são as pedras paridas. Elas vão crescendo devagar dentro das lajes e depois saltam fora" - garante Manuel Tavares, agricultor. "E do sítio de onde elas saem fica um pretinho por baixo, sempre um vãozinho preto e depois torna outra joga a crescer com o tempo e torna a saltar". Mas elas dão mesmo um pulo, é? "Eu sei lá, nunca vi nenhuma a parir." Mas elas andam muitas por aí, soltas. "São mistérios. E por que é que a cal com a chuva racha, abre e mói? E também é uma pedra".
Uma espécie de menstruação
Francisco Tavares, dono de gado miúdo, da 19.ª de Comandos de Moçambique, "aquilo sim, explorava-se água nas matas para beber e aparecia petróleo", tem opinião: "Não saltam nada, nascem lentamente. Vão-se agarrando por elas próprias". Elas são as jogas, a que os miúdos de Castanheira chamam ovelhas e os geólogos designam por encraves. "Têm fermento dentro, em granito. E é esse fermento que as faz engordar. As pequenas ficam grandes e prontas a parir. Depois é que elas vão deixando rasto...".
A explicação parece-lhe difícil: "A especialidade que as faz engordar e engrossar é a bolha de granito que têm dentro. Deixam fermento de umas para as outras e continuam por aí além sempre a parir. A sair da rocha e a parir". Será? "Nós praticamente não sabemos nada disto. Quem nos explicou foram os ingleses e os americanos e os alemães, engenheiros-doutores que andaram por aí a estudar. Eles disseram que com o poder do engrossamento elas explodem, derivado à natureza do clima, do sistema solar, eu sei lá...". Insiste: "E isso por causa do fermento que têm dentro, um granito especial mesmo, uma espécie de menstruação".
De avião
A NM foi à Castanheira. É sábado, manhã cedo. A aldeia, 50 moradores e uma dúzia de casas, parece deserta. Está tudo para o campo: um tapete verde cortado por muros irregulares e baixos de pedra solta. Nas estrada asfaltada que dá acesso ao povoado, só se vê Manuel Tavares, velho agricultor a rondar os 90 anos. Anda ali, por força "da trombose aqui deste lado há quatro anos". Caminha sem parar, para trás e para a frente, parece uma sentinela sem quartel. Uma seta pintada à mão, aponta à esquerda: pedras parideiras. E elas estão logo ali, junto à estrada. Afagadas pelo tempo, pela chuva, por pés curiosos, pelo rodado de jipes e de motos, em ralis de Verão. "Pedras sem dono. Caminho para passar vacas e gado miúdo", no dizer de Manuel Tavares.
Dali, as parideiras trepam em direcção à crista da serra, num lajedo íngreme de granito maciço. Para um leigo, à primeira vista, aquele é um granito igual a todos os outros. Só depois, de mais perto, se descobrem nódulos arredondados de mica preta, as jogas, à flor da rocha". Dantes, as pedras parideiras também se derramavam para baixo, para o coração da aldeia, como um rio de granito em turbilhão, bordejado de casas. Agora, ao fundo de uma estrada de paralelo, já perto dos terrenos de cultivo, a residência do presidente da Junta: "Antigamente aqui só passavam praticamente cabras. Existiam só as pedras parideiras, um filão delas. E, de resto, não passava mais nada. Uma pessoa que quisesse vir de automóvel aqui à beira de minha casa, não passava. Por isso eu tive que rebentar com elas. Teve de ser assim. Eu não podia vir de avião".
Antes que seja tarde
Aos poucos, Castanheira está a conciliar-se com as suas pedras. Está a aprender a coexistir com elas. A compreender que afinal há lugar para todos na aldeia. Para o povo e para as pedras. E que ambos são lá necessários.
"Eu gostava de preservar isto. Para mim é um património". Quem o diz hoje é o presidente da Junta da terra. António Tavares José já escreveu à Câmara de Arouca a pedir a tomada de medidas para salvar o que resta das pedras parideiras. "E depois disso até já falei com o presidente da Câmara que me disse "sim senhor, estava a pensar nisso e em mandar fazer uma vedação". Esta ideia corresponde ao que pensam as pessoas na Castanheira. Acham necessário, no mínimo, instalar uma cerca nos afloramentos mais importantes "de maneira a que o pessoal de fora não pudesse levantar pedra. Ao menos nas melhores áreas".
Fernando Noronha, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, é de opinião que a autarquia de Arouca e o povo da Castanheira são entidades fundamentais para ajudar a salvar estes "importantes monumentos geológicos: coisa rara que não se pode deixar destruir". E diz-se mesmo completamente disponível para, com o Centro de Geologia da sua Faculdade, proceder a uma correcta inventariação da área a proteger e dar parecer sobre a melhor forma de actuar.
No domínio das acções a empreender, Fernando Noronha acha prioritário esclarecer as populações e a autarquia sobre o valor e a importância do património em risco. E sugere, na linha do que se faz lá fora em determinados trajectos geológicos, que na Castanheira sejam por exemplo instalados grandes painéis onde, com palavras simples, o fenómeno seja explicado ao grande público. Uma coisa é certa: algo tem de ser feito, e com urgência. Antes que seja tarde.
Para Fernando Noronha, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, a chave para a compreensão das pedras parideiras aconselha a fazer uma fantástica viagem no tempo: "Temos de imaginar uma coisa com muitos milhões de anos. Se tivermos essa capacidade, podemos ver uma rocha desde a nascença quase até à morte. Simplesmente ela nunca morre, porque reincarna noutra. É um ciclo litológico". E conclui: "Como há rochas ígneas, rochas sedimentares e rochas metamórficas, elas nunca morrem. Uma quando acaba dá lugar a outra".
Nesta ordem de ideias, e segundo a interpretação de Fernando Noronha, o granito da Castanheira, aquando da sua formação ou instalação, terá agregado no seu seio restos de rochas preexistentes. Esses materiais deram origem a formações nodulosas de predominância biotítica (encraves ou jogas). Já depois disso, há 320 milhões de anos, o granito terá sofrido poderosas deformações. As pressões que estiveram na origem deste processo exerceram-se também sobre os encraves e determinaram o seu achatamento.
Entretanto, as massas graníticas que afloram à superfície do solo vão-se, nos nossos dias, desagregando e libertam os encraves. Afastada está a ideia, muito enraizada entre o povo da Freita, de que seriam os encraves a fazer, no presente, uma espécie de migração do interior do granito até à superfície da rocha. "Essa do nódulo migrar, sair do seio da pedra para saltar cá para fora, isso não. A pedra pare aquilo porque tem lá aquele corpo estranho. A pedra racha e parte - porque tem uma foliação bem marcada - e nessa altura o nódulo sai". E Fernando Noronha conclui: "O partir do granito é que vai libertar os seus prisioneiros que são os encraves, processo facilitado pela acção erosiva".
Na mesma linha interpretativa está o estudo dos geólogos Carlos Teixeira e Torre Assunção, da Universidade de Lisboa, publicado em 1954. As pedras da Castanheira são aí caracterizadas "como rocha granítica com numerosos nódulos biotíticos em forma de discos circulares ou de medalhões (...)". Através da erosão do granito, explicam, esses nódulos de biotite (mica preta) paulatinamente afloram à superfície da rocha, desprendem-se e vão-se acumulando no solo. "Por isso, os camponeses da região chamam à rocha "a pedra que pare pedra", isto é, a rocha que produz uma outra rocha".
in Notícias Magazine, 16 de Maio de 1993; http://reporter.canalblog.com/archives/2006/11/index.html