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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Humor ao alto XV









domingo, 30 de maio de 2010

Paixão

O gosto de dar nas vistas levou-a a apaixonar-se pelo homem sentado à esquina, todos os dias sentado à esquina a olhá-la, horas a fio sentado à esquina a olhá-la fixamente por detrás dos óculos, a tocar acordeão.

In O caçador de luas, Augusto Baptista, edições gatopardo, 2003

Controvérsia

Chegou-se a ela, sapateado à flor do chão

tac! traraaaac! tac!
taac! tac! traraac… taac!
traraaaaaaac! tac!!!

Parou, mão no bolso, a desafiar. Ela soltou os pés, ao rés do salão

pac! prarac… pac! praraaaaaaaaac! pac!!!

Sintética eloquência! Ele ajoelhou, teatral: cabeça baixa, em jeito de rendição. Num repente, contra-atacou

tac! trarac! tac! tac! traraaac! tac! tac!
trarac... tac! tac! trarac! tac! tac! trarac!
tac!

Ela sorriu num leve volteio de anca, fraseou

pac! prarac! pac! prarac! pac! praararac! pac! pac!
pac! pac!
prarac! pac! pac! pac!

Chão ainda a fumegar, contrapôs ele

tac! trarac! trararac! tac! tac!
tac! tac! traraac! trarac! tac! tac!!!

Ela não se calou

pac! prarac! pac! parac! pac! praraac!
pac! pac! parac! pac! pac!!!

E a discussão não mais parou

tac! trarac! pac! parac! tararac! tac! pac!
pac! tac!
pac! tac! pac! tarac! pac!
tac! pac! tarac! tac! parac! tac! pac!


tac!!!

pac!!!


tac! tac! tac!


parac!


tac!


pac!


pac! tac! tac! pac! praararac! pac! tac!


In O caçador de luas, Augusto Baptista, edições gatopardo, 2003

segunda-feira, 24 de maio de 2010

MOUSTACHE









in Moustache, Augusto Baptista, edições gatopardo



domingo, 23 de maio de 2010

Projecto aéreo


Em terra, nó firme cerca o dente cariado; rumo ao céu, o foguete torna iminente o instante libertador.
In O Caçador de Luas, Augusto Baptista, gatopardo, 2003

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias


Em passeio de família, a mão-de-vaca mais o pé-de-boi foram dar uma volta com a mãozinha-de-vitela. Onde vão, onde não vão, foram ao talho, para conhecer. E lá entraram, todos os três, o pé-de-boi à frente, as mãos atrás.

Para quem até aí só conhecera o mundo verde, a vida tinha ali a cor complementar. Entre véus vermelhos, carnes vivas, miudezas, vitualhas, entrecobertas com paninhos e toalhas cor-de-sangue.

A mãozinha-de-vitela na sua inocência por ali andava, irrequieta, a saraquitar. Por perto, a mãe. O pai ao largo.

A páginas tantas, deu no olho à mão-de-vaca, grandes, dois olhos de carneiro mal morto, bicho careca. Estava no gancho, a espreitar! Dependurados, penduricalhos.

Depenados, crista alçada, os frangos, mais de vinte, esticados no galanço. E os coelhos, grandes, gordos, tudo pelado, ao monte, carne com carne. Que sítio é este? E a mão-de-vaca cingiu a mãozinha-de-vitela.

Piscar venéreo, o néon. Tesos, os chouriços. E um presunto, rançoso e negro, barba por fazer, curtido em tinto e fumo, partes barradas com colorau, venal, sabido, a acenar com os presunhos… Olho vigilante, a mão-de-vaca, safanão na mãozinha de vitela: Não se mostra os dentes a desconhecidos! E cornos no ar: Onde pára esse pé-de-boi?!

Vidrado nos tons de vermelho, no desfrute da cor, ruminante, o pé-de-boi deambulava solitário. Eléctrico, acorda num sobressalto de mão familiar: Anda, isto não é sítio para a mãozinha. E entredentes: Depois falamos…

Em tropel, iam já a sair pela soleira, afligidos agora por um mesmo mau pressentimento, quando uma mão sinistra as unhas se lhes crava. Vermelho vivo, a todos três. E os mete numa saca aos xadrezes.

In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista

O rosto e a máscara






Saudáveis, risonhos, felizes por cumprirem os desígnios celestes de morrerem por nós, frangos, vacas, cabritos, porcos, linguados, corvinas, esperam-nos no talho, peixarias, restaurantes, na impaciência de serem comidos, devorados por nós. Mas será este o rosto ou será esta a máscara da tragédia?


Fotografia e texto: Augusto Baptista


Que prazer, que alegria no mundo haverá maior do que a de morrer por nós? — isso nos parece dizer a ampla figuração que anima as montras e o interior de muitos talhos, restaurantes, peixarias. Mas seria suportável o pesadelo de encarar a procissão de morte e carnificina que, para viver, cada um de nós arrasta atrás de si?

Preferível é imaginar mortos felizes, corpos que se entregam, solidários, e que nos exigem a gostosa obrigação de os trincharmos. Mas sendo a morte um momento, um processo tão dramático, acreditar que os outros morrem alegres por nós, serenamente, só pode ser um fingimento, um modo de iludir a culpa, o pecado (ou não) de matar.

Na Vagueira, anos 90, juraria Maio, talvez Junho, entregue à companha do ti João da Murtosa, fui ao mar. Lançada a rede ao largo, inesperadamente os pescadores ergueram-se no pequeno barco em meia lua. E quando esperava eu um gesto soberano, curvaram-se. A rezar. Louvor por estarem vivos, apelo ao sucesso do lanço? O êxito dos homens, a aflição dos bichos; a vida de uns, a morte de outros.

Pescar e pecar, conceitos próximos, mesmo quando do pecado não há entendimento ou nele não se acredita, como o pescador de Hemingway: "Não mataste o peixe só para viver e vendê-lo para ser comido. Mataste-o por amor-próprio e porque és um pescador. Amáva-lo enquanto estava vivo, e ama-lo depois de morto. Se o amas, não é pecado matá-lo. Ou será mais?». Pecado ou não pecado, «tudo mata, de uma maneira ou de outra», reconforta-se o protagonista de “O velho e o mar”, enleado num jogo ambivalente e sem saída: «Pescar mata-me, exactamente como me mantém vivo».

Nós e os outros, viver e matar, culpa, oração: tema de escritas. Na obra "Palomar", Italo Calvino dedica ao universo do talho a narrativa "O mármore e o sangue". «As reflexões que o talho inspira a quem lá entra com o seu saco de compras implicam noções transmitidas ao longo dos séculos em vários ramos do saber» incluindo «os rituais que nos permitem aplacar o remorso de pôr fim a outras vidas para nutrir a nossa».

No palco de sangue, o senhor Palomar permanece aí como num templo e, «apesar de reconhecer na carcaça pendurada do boi a pessoa do seu próprio irmão esquartejado, mesmo reconhecendo no corte do lombo a ferida que mutila a sua própria carne, sabe que é um carnívoro, condicionado pela sua tradição alimentar a recolher num talho a promessa da sua felicidade gustativa, a imaginar, observando estas fatias avermelhadas, as estrias que a chama deixará nos bifes na grelha e o prazer do dente ao cortar a fibra tostada».

Entre a alegria e o temor, o desejo e o respeito, o egoísmo e a compaixão, «o estado de alma de Palomar na bicha do talho» equivale ao «que outros talvez exprimam na oração».




Um porco de cartola

«Tudo o que vive e se move servir-vos-á de alimento. Entrego-vos tudo, como já vos havia entregue os vegetais», assim falou Deus a Noé e seus filhos, depois do dilúvio.

Apesar do salvo-conduto omnívoro do "Génesis", outros Livros do Antigo Testamento introduziram condicionantes, dividindo os animais em puros e impuros, nos que se podem e nos que não se podem comer; restrições entretanto levantadas em vários textos do Novo Testamento.

Em suma, o corpo bíblico dá luz verde para trincar quadrúpedes (sejam ou não ruminantes, tenham ou não casco fendido), peixes (com ou sem escamas e barbatanas), insectos, bicharada rastejante. Enfim, não há seres «abomináveis», «animais impuros». Haja apetite e, sem entrave da Bíblia, não há bicho que escape ao destino da faca e garfo.

Este manto cultural e religioso é transferido para a própria bicharada, ficcionando os homens um mundo cor-de-rosa em que porcos, patos, congros, perus, bois, garoupas, ovelhas, vacas, o reino animal enfim, solidário, altruísta, agradado e obediente à palavra de Deus, nos espera risonho, saudável, feliz, nas churrasqueiras, nos restaurantes, nos mercados.

No Bolhão e no Bom Sucesso, velhos mercados do Porto, e no mercado de Matosinhos, a presença de referentes religiosos constitui-se dominante. No Bolhão, entrada Sul, e na escadaria do Bom Sucesso há nichos em louvor de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora Auxiliadora (a que também ouvi chamar, por irónica corruptela, Assoreadora) em cuja base sempre vi círios a arder.

Sob esta matriz de generalizada religiosidade, dir-se-ia que o climax devocional reina nos postos de venda da carne e do peixe. Em muitos deles, erguem-se discretos altares com santos, santas, terços. Às vezes lamparinas, velas, marcam presença. E entre chouriços, carcaças de bezerro, orelheiras, não raro espreitam figurinhas de papel evocando Nossas Senhoras, Corações de Jesus...

A "Salsicharia Sol Alto", com presença no Mercado do Bom Sucesso, editou calendários para 2002 com diversas ilustrações religiosas: aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos, menino Jesus ao colo de Santo António, S. José mão no ombro do jovem Jesus. Na base das imagens, ladeando o nome da salsicharia, jaz, discreto, um porco desenhado com cartola. Dentro de um caldeirão.

A coexistência entre o religioso e o humor exprime-se aliás no espaço de alguns talhos e peixarias, dentro dos mercados referidos. É frequente encontrar bonecada de plástico ou de barro, porcos, vacas, galos, tudo animado, sorridente, onde também reinam, sérias, presenças sacras, e escorre sangue.

Ninguém se escandaliza, espanta, protesta ou descobre sacrilégio na relação sagrado-humor. Componentes integradoras, serão pólos de um processo de duplo apaziguamento, dois modos de esconjurar a culpa: desdramatizando a morte; abençoando-a.

Se a morte com sentido social, visando a alimentação humana, suscita ponderações, que dizer dos chocantes morticínios em massa de animais considerados excedentários, em obediência a determinantes de lucro e a jogos de mercado? Isto enquanto extensas zonas do planeta, pessoas aos milhões, crianças, são fustigadas pela fome. Mais do que pecado, este é crime sem perdão.

A fome no mundo, que também nos afecta, não torna sustentável preconizar uma radical e imediata alteração de hábitos alimentares, banindo da ementa carne, peixe — embora, para populações carenciadas, carne e peixe sejam quimera. Também o peso cultural, o modo como por tradição nos alimentamos, torna difícil mudar.

Mas um dia terá de ser. E bom seria que todos nós, súbditos do cozido à portuguesa, já neste nosso tempo optássemos por uma alimentação menos inquietante.



Mercado do Bom Sucesso: Nª Sª Auxiliadora

Mercado do Bolha: Nª Sª da Conceição


Entrego-vos tudo

Diz a Bíblia (Génesis, capítulo 9, versículos 1 a 3) que depois do dilúvio «Deus abençoou Noé e os seus filhos, dizendo: "Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra. Todos os animais da terra vos temerão e respeitarão: as aves do céu, os répteis do solo e os peixes do mar estão sob o vosso poder. Tudo o que vive e se move servir-vos-á de alimento. Entrego-vos tudo, como já vos havia entregue os vegetais"».

Entretanto, ainda no Velho Testamento (Levítico, cap. 11, vv 1-47), são longamente caracterizados os animais puros e impuros, os que se podem ou não comer. Noutro livro do Velho Testamento, Deuterónimo (cap. 14, vv 3-21), de volta ao assunto, é recomendado nada comer «que seja abominável», seguindo-se uma relação dos quadrúpedes puros: «boi, carneiro, cabra, veado, cabrito, gamo, cabrito montês, antílope, búfalo e cabra selvagem. Podereis comer também qualquer animal que tenha o casco fendido e que rumine. Porém, há ruminantes e animais com casco fendido que não podereis comer: o camelo, a lebre e o texugo, que ruminam, mas não têm casco fendido. Esses serão impuros para vós. Quanto ao porco, que tem casco fendido mas não rumina, considerá-lo-eis impuro: não comais a sua carne, nem toqueis no seu cadáver».

Dos animais que vivem na água, autorizado é comer só os que têm barbatanas e escamas. «Os insectos que voam» todos devem ser considerados impuros. E, das aves, «não podeis comer o abutre, o gipáeto, o xofrango, o milhafre negro, as diversas espécies de milhafre vermelho, todas as espécies de corvo, o avestruz, a coruja, a gaivota e as diversas espécies de gavião, o mocho, o íbis, o grão-duque, o pelicano, o abutre branco, o alcatraz, a cegonha, as diversas espécies de garça, a poupa e o morcego».

Esta «concepção pesada e formalista» foi abolida no Novo Testamento (Mateus, cap.15, vv 10-20; Marcos, cap. 7, vv 14-23; Actos, caps. 10 e 11), o que corresponde — para desgraça do porco — a declarar todo o mundo animal sob alçada do dente humano. No Evangelho segundo S. Marcos, diz Jesus aos discípulos: «"Não compreendeis que nada do que vem de fora e entra numa pessoa pode torná-la impura, porque não entra no seu coração, mas no estômago, e vai para a privada" (Assim Jesus declarava que todos os alimentos eram puros)».




Todos os nomes

Quem se der ao trabalho de atentar nos nomes, vai surpreender-se com a expressiva associação entre os talhos e o religioso. A propósito, em S. João da Madeira, um exactamente se designa Talho O Templo das Carnes (recentemente mudou para Talho Ângelo Valente). E é espantosa a quantidade de santos e de santas mobilizados para a função, sobretudo no Norte. A título de exemplo: Talho São Caetano, Rio Tinto; Talho Senhor dos Navegantes, Vila do Conde; Talho Senhora de Guadalupe, Águas Santas; Talho Nossa Senhora do Livramento, Braga; Talho São José, Baixa da Banheira; Talho de São João, Funchal; Talhos Nossa Senhora dos Altos Céus, Anta; Talho São Marcos, Trancoso; Talho São Lourenço, Porto; Talho São João Baptista, Almada; Talho São Francisco, Loulé; Talho São Mateus, Angra do Heroísmo. Muitos mais se poderiam citar, um tanto por todo o país: São Gonçalo, São Tiago, São Miguel, São Jorge, São Caetano, Santa Maria, Santa Luzia...

Nomes com ressonância bíblica também se encontram com abundância: Talho Arca de Noé, Vila do Conde; Talho O Dilúvio, S. Romão do Coronado; Talho Natividade, Lisboa; Talho Paraíso, Vila Nova de Gaia; Talhos Boi Doiro, Alijó e Viseu; Talho Vitelo Dourado, Viana do Castelo; Talho Calvário, Valongo; Talho Monte Calvário, Gouveia; Talho da Cruz, Santa Maria da Feira.

Nomes tristes, de Semana Santa, e outros de arrepiar, também os há: Talho Fado, V. N. de Gaia; Talho do Rosário, Porto; Talho das Dores, V. N. de Cerveira; Talho Novo da Saudade, Penafiel; Talho Meia Noite, Lanheses; Talho Alívio, Lda, Perelhal; Talho Desterro, Angra do Heroísmo; Talho O Braseiro, Aveiro; Talho Boa Faca, Delães; Talho Cortador, Matosinhos; Talho Espeto, V. N. Gaia; Talho Rua Escura, Porto; Talho Novo Corte, Bombarral; Talho Réu, Amarante; Talho Central Senhor dos Aflitos, Baltar.

Encontram-se designações refinadas: Boutique de Carnes, Porto; Talho Fina Flor, Moimenta da Beira; Talhos Requinte, Cacém; Talho Carnes de Categoria, Coimbra; Talho Azul, Silves. E há nomes de gente da escrita: Talho Garrett, Porto; Talho Eça de Queirós, Póvoa do Varzim; Talho Antero de Quental, Lda, Porto; Talho de João de Deus, Porto.

E há nomes risonhos: Talho Alegria, Porto; Talho Alegre, Mealhada; Talho Flor da Alegria, Porto; Talho Contente, Castro Verde. Há designações solares: Salsicharia Sol Alto, Porto; Supertalho Pôr do Sol, Lda, Lousada; Talho Varandas do Sol, Esmoriz. Referências a telenovelas também se encontram: Talho Pantanal, S. Mamede de Infesta; Talho O Bem Amado, Lda, Guimarães; Supertalho O Rei do Gado, Viana do Castelo.

Surpreendem-se travos cosmopolitas: Talho Francês, Lda, Lisboa; Talho Alemão, Lousã; Talho Muçulmano, Lda, Lisboa; Talho Londres, Cacém; Talho Paris, Maia; Talho Inglês, Almancil; Talho Oriente, Lisboa; Talho Europa, Figueira da Foz; Açougue Brasil, Ponta Delgada. Há nomes directamente dirigidos ao estômago: Talho Nutritiva, Porto; Supertalho O Tourão, Lda, Caldas das Taipas; Talho Bom Bife, Odiáxere; Talho Colosso, Porto; Talho Bifão, Caldas das Taipas.

Há talhos com nome número: 1, 17, 20, 29, 452, 501... E há donos de talho com apelido: Leitão, Coelho, Vaquinha, Pinto, Perdigão, Baleia, Lampreia, Ruivo, Lagarto, Pisco, Milhano, Raposo, Onça, Pavão, Aranha, Cabrinha, Vitelo.

As peixarias igualmente recorrem a nomes de santos e de santas, mas dir-se-ia com mais comedimento. Abundam evocações oceânicas: Peixaria Maré Alta, Maré Viva, Atlântico, A Onda, Estrela do Mar. E há frequentes diminutivos: Peixaria Rosita, Dininha, Teresinha, Bininha, Bélita, Lotinha, Robalinho, Pescadinha. E, entre todos os nomes, em Albufeira, há a Peixaria dos Olhos de Água.





Se os tubarões fossem homens

Em "Histórias do Senhor Keuner", conta Bertolt Brecht, com ácida ironia e pela voz da personagem K., que «se os tubarões fossem homens» seriam mais amáveis para os peixinhos: «organizariam grandes festas aquáticas porque os peixinhos alegres são mais saborosos do que os melancólicos». Teriam também a sua arte, teatros no fundo do mar «que mostrariam como os peixinhos heróicos e corajosos nadam com entusiasmo em direcção às goelas dos tubarões, e a música seria tão bela que os peixinhos, ao som das notas, precedidos pela orquestra, precipitar-se-iam sonhadoramente na garganta dos tubarões embalados pelos mais encantadores pensamentos».

E haveria uma religião, se os seláquios fossem homens. Uma religião, diz o senhor K., a ensinar que «os peixinhos só começam verdadeiramente a viver na barriga dos tubarões». Nasceria entre os peixinhos uma hierarquia e «os que fossem um pouco maiores, teriam mesmo o direito de comer os mais pequenos» e de zelar pela ordem, tornando-se professores, oficiais, engenheiros. «Para resumir, só se os tubarões fossem homens nasceria nos mares uma civilização».













Nota

A reportagem "O rosto e a máscara" (incluindo os três complementos "Entrego-vos tudo", "Todos os nomes" e "Se os tubarões fossem homens") foi concluída em 2002. Por dificuldade de acolhimento e de publicação na imprensa escrita, o trabalho só agora é aqui editado.

O texto mantém-se inalterado face ao produzido em 2002. As imagens, por descaminho dos originais, foram registadas em 2010 (à excepção da fotografia com os três calendários editados pelo talho Sol Alto).

O contacto agora efectuado para recolha de imagens (Porto e Matosinhos) revelou o encerramento de muitos estabelecimentos (peixarias e, sobretudo, talhos) de tipo tradicional e a abertura de outros, aspecto moderno; revelou grave afectação funcional dos mercados do Bom Sucesso e do Bolhão, pondo em perigo um património também cultural inestimável.

De qualquer modo, prevalecem - mesmo que com menos exuberância - os referentes imagéticos em que assenta a reportagem, como aliás as fotografias publicadas testemunham.

No presente, tal como em 2002, também frequente foi encontrar abundância de figurações exaltantes do potencial físico dos animais abatidos: touros (explosiva corpulência de testículos e cornos), galos (crista vermelho-ardente). Igual exaltação dos atributos físicos da oferta animal se exprime na designação de alguns talhos: Super Talho O Tourão, Talho Colosso, Talho Bifão.

Os novos espaços a que atrás aludimos apresentam-se por norma des-sacralizados, celofanizados, despidos. Alguns deles adoptam uma simbologia estilizada, outros procuram colar-se a mensagens ecológicas.




Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Dos cheiros

Quando chovia, todo o mundo ia ver derrapar os carros. Os que mais dançavam eram os mais cautelosos, os que mais devagar se faziam à ladeira. Ziguezagueavam no paralelo besuntado e, à boca do armazém, quase a vencer o íngreme percurso, navegavam sem norte. Um suplício. Um longo suplício de carros desgovernados a lamberem a estrada, berma a berma. Até se deixarem escorrer. Vencidos.

O povo ria. E a humilhação durava horas. Durava, enfim, o tempo que cada espectador pudesse, que a saga prosseguia quando, por força de afazeres, entre a assistência alguém desarvorava.

A cheirar a azeite.

A terra, para ele a terra é também memória. Esta memória. Memória de este e de outros odores, impregnados na carne. Rasto de vinho tinto e bagaço, na loja do Marcelino, no quelho. Aceno de eucalipto e mimosas na Escola Livre, quando os professores faltavam e a malta ia para ali jogar a bola. Cheiro a chuva, a terra molhada, a pão, a campos lavrados. Primavera. Aroma de flor de laranjeira, tília, na avenida, no jardim. Um remoto fumo acre vindo da casa do ferrador, velho Pote, ferraduras em lume a estrugir na pata dos bois, dos garranos.

A terra, a sua terra, perfume de soalho lavado, sabão amarelo. Leite mungido, jacto fino, sonoro, apontado ao canado. Um sinal de café moído na loja do Cipriano Martins. Presença de castanha assada na esquina do Pintor, Casa D. Hóspedes, anunciada assim na parede. Zamacóis. Brisa de vitela assada no Pechão. Padas de Ul, inchadas padas de Ul com fiambre, aprontadas pelo senhor Augusto, no Flecha.

A terra, a sua terra, cheiro velho a procissão. Pés penitentes a pisar os verdes sobre a estrada, mulheres com mantilhas pretas, homens submissos, anjinhos imaculados, todos levados na cadência da banda, das orações, das velas tremeluzentes a agigantar a noite, as sombras, os medos.

A terra, a sua terra, longínqua respiração. Hálito quente e bom do avô, do seu velho avô no Inverno, a bafejar-lhe o peito. A trespassar-lhe a roupa. A vazar o tempo.


In http://reporter.canalblog.com/ Augusto Baptista


Humor ao alto XIV

Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias

Nasceu e cresceu assim. E assim se habituou a viver, autónomo, constante precisão de gestos e alerta de sentidos. Aprendeu a ler os sons, os cheiros. E a ver por eles e pelo tacto da bengala. Um código de sinais difícil de explicar.

Pela manhã, como sempre, saiu de casa. Na rua, a cidade a ferver num desassossego de carros, autocarros e gente, desencontro de caminhos e destinos. E ele a bengalar o chão, passo travado, atento, no passeio. De súbito, choque brutal, um clarão! Relâmpago de luz plena. Punhal de fogo no fundo dos olhos.

Projectado sobre o asfalto, enovelado em raios de claridade, caiu, olhos vidrados. Via! Agora via! Nítidas as formas, as tintas da sua cidade tacteada. Brancas de cal, caras sobre ele. Olhos de espanto azul, castanho, negro. Coloridos, tão lindos, os olhos. Mãos debruçadas num socorro. Dedos nervosos, tisnados de tons impacientes. Chamem o 112! Bocas abertas em gritos de lábios róseos, cor inesperada: Mataram o ceguinho! Os cabrões do carro mataram o ceguinho e puseram-se nas putas!

Ele, como tombou, ficou. Olhos pasmados para o céu. À sua volta, bando nervoso, as jovens do colégio ali de frente. E ele a topar, passarinhantes, exaltadas, pernas de seda. A mirar quietinho pérolas de luz em excitação de fogo. A micar, por baixo das saias desacauteladas, coxas tenras. Carne pele de veludo a levitar em arco-íris de langerie tranparente. Clara, branca, langerie transparente. Sempre mais clara, mais luz, mais transparente. Luz absoluta. Luz original.

In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista

sexta-feira, 14 de maio de 2010

HUMOR DAS MULTIDÕES

No suplemento cultural de O Primeiro de Janeiro, e a instâncias do meu amigo Francisco Duarte Mangas, saíram publicadas algumas situações avulsas de Humor das Multidões. Corria o ano de 1991.
Razões editoriais tolheram a iniciativa, quase no ovo. Mas o contratempo não travou o paulatino acumular de produção. E, a páginas tantas, tinha um naipe de situações que daria até para fazer um livro. Fazer um livro?! Decidi-me.
Em má hora: a falta de apoios, a inabilidade no tratamento destas coisas, tudo isto obrigou a palmilhar labirintos sisudos. E a brincadeira depressa perdeu a piada.
Num beco sem saída e como não sou homem de desistir, recorri à publicação mental da obra. Reuni desenhos, paginei, cuidei da capa e dos detalhes, esmerei no aspecto gráfico e, cerebral, accionei a edição.
A primeira tiragem, à mesa do café, entre amigos, rapidamente se esgotou. Depois outra, outra e… Consumi-me em edições mentais, sem conseguir dar vazão às encomendas. E fui obrigado a recorrer à impressão clássica.
Aqui está Humor das Multidões, versão papel, sem o fulgor da utopia, sem a luz primordial do livro-pensamento. Com palavras negras, desenhos baços, densidade de chumbo, eu sei. É sempre assim, dizem-me, quando as ideias se concretizam.
Face ao irremediável, resta-me a esperança de que esta publicação, concreta e parda, se possa redimir do pecado do corpo. Caminho de redenção que talvez passe por arrancar de si, leitor, um irreprimível e mesmo que levíssimo sorriso. Sinal definitivo de que existimos.

In Humor das Multidões, 2000, Augusto Baptista





in Humor das Multidões, Augusto Baptista

quarta-feira, 12 de maio de 2010

Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias


Vida madrasta! Ele, fisicamente parecidíssimo com o patrão, na empresa não passava de um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.

Resolveu vingar-se da má sorte. Gizou plano. E, por um dia, fez-se passar pelo outro. Resultou: senhor doutor para cima, senhor doutor para baixo, reuniões, salamaleques, secretárias a sacudir-lhe a caspa do casaco.

Um dia em cheio! Praticamente só ensombrado por um pequeno pormenor: “Imperdoável ele ter faltado sem justificação, senhor doutor!” – justiçava o chefe de pessoal.

Ainda tentou relativizar o caso, dar uma nova oportunidade ao homem. “Seria um grave precedente! Há normas!” – inflexível, o burocrata.

Não havia volta a dar-lhe. E teve mesmo de despedir o faltoso. Um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.


In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista

terça-feira, 11 de maio de 2010

O homem que engole aço

Quando lhe perguntaram como consegue tal prodígio, diz ser tudo resultado de uma evolução paulatina, natural. Começamos pelo leite, explica, depois as papas, o arroz, a carne e outros sólidos.
No seu caso, iniciou-se nos canivetes pequeninos, passou às facas, depois às baionetas, e só agora ousa engolir as espadas da farda de gala da GNR.

in o homem que, Augusto Baptista, 2008

O homem que se abotoou com umas massas

Com evidente embaraço, a dona da loja lamentava não poder satisfazer as exigências do encapuzado. Carolino, agulha, extra, arroz não tinha. Mão na máquina registadora, insinuou alternativa: talvez massas, umas massas. Ladrão romântico, o assaltante guardou o revólver e, contrafeito, saiu com uma embalagem de aletria na mão e dois pacotes de estrelinha no bolso.

in O homem que, Augusto Baptista, 2008

TANGRAM

Tangram é jogo de magicar, expressão de magia e de pensamento, nascido na China, a partir dos primeiros anos do século XIX, conquistou o mundo.

Formado por sete figuras geométricas susceptíveis de tantas conjugações quantas a imaginação consinta, o puzzle tem regras mínimas: a utilização para cada caso das sete peças que o integram, sem sobreposições.

Simples, na aparência, o tangram cativou criadores, artistas, intelectuais. Gente famosa. Elixir para mentes geniais, foi jogo eleito de Napoleão, apaixonou Faraday, Edgar Allan Poe, Hans Christian Andersen. E o elenco dos praticantes de nomeada poderia crescer, também com gente da actualidade, tantos em todo o mundo os seus apaixonados e cultores.

Jogo de solitários, que não de solidão, o tangram abre desafios aquietantes, como quem, abstracto, olha na lareira o fogo. Ou, atento, observa um aquário, serena suspensão do tempo: espécie de viagem de Verne.

Para os que gostam de partilhar, o jogo agasalha a cooperação, nele cabem vivências díspares para, em reflexão conjunta, conjugando raciocínios, se poderem ultrapassar desafios de improvável vencimento individual.

Os problemas com que se tenha de deparar, alguns difíceis, outros nem tanto, não deve o leitor desistir à primeira. Como na vida, teime, insista, persevere. Vire e revire as peças, sistematize as abordagens. Pense devagar, repense sem pressa. Com ironia, ao jeito de Alexandre O’Neill, mãos entretidas “num tempo fértil”, sem pudor do absurdo:

Por que não há

Padarias que em vez de pão nos dêem seios

Logo p’la manhã?


In Tangram-Humanas figurações, Augusto Baptista, 2007


segunda-feira, 10 de maio de 2010

Humor ao alto XIII

Pedras Parideiras


Texto de Augusto Baptista

É um fenómeno espantoso, talvez único em todo o planeta. Na aldeia de Castanheira, perto de Arouca, em plena serra da Freita, aqui em Portugal, há pedras a parir pedra. O povo da região chama-lhes as pedras parideiras. E há quem diga que elas parem desde o princípio do Mundo.

"Parecem pedreiros. Trazem martelos e andam por aí a partir pedra. Até os muros desfazem. E nós não podemos fazer nada". António Tavares José, presidente da Junta, anda desolado. Principalmente ao fim-de-semana, em Castanheira é o fim do mundo. Vem gente de todo o lado à cata das pedras parideiras. "O pessoal podia vir aqui ver, mas deixar a pedra quieta. Assim, até parece que andam a destruir a povoação. Levam toda a qualidade de pedra. Chegam a carregar carros e furgonetas", desabafa.

À serra da Freita, cada vez desagua mais gente. São carros, excursões de curiosos, ávidos de ver e de ter a pedra que pare. "Até já mete nojo ver o pessoal todo a apanhar pedras. E não há interesse nenhum em levá-las. Elas fora daqui não parem. E acho bem, afinal aqui é que é a terra delas", opina o homem da Junta.

O povo da aldeia indigna-se com o que vê, mas sente-se impotente. "Não podemos ir à frente. Temos de ter uma iniciativa da Câmara ou de alguém. Ainda não houve entidade nenhuma que se opusesse e nós não podemos fazer nada sem sair uma lei. Não podemos pôr aí uma placa "Proibido levantar pedras".

A febre das pedras parideiras está a perturbar a pacatez do dia-a-dia serrano. Os curiosos que aqui chegam não sabem ao certo ao que vêm. Procuram não sabem bem o quê. Perseguem uma miragem. Apostam na ilusão de surpreender o supremo momento de nascer. Querem ver a pedra parir. O imaginário popular das gentes serranas ajuda ao sonho. "Aqui está uma pedra, seja grande, seja pequena, pare sempre, com o tempo. Isto é assim desde o princípio do Mundo. Sempre a parir".

Na Castanheira, a pedra-mãe, a pedra-parideira, é o granito. Ventre de onde nascem pequenas pedras arredondadas, paridas em fantásticas gestações milenares. "As jogas são as pedras paridas. Elas vão crescendo devagar dentro das lajes e depois saltam fora" - garante Manuel Tavares, agricultor. "E do sítio de onde elas saem fica um pretinho por baixo, sempre um vãozinho preto e depois torna outra joga a crescer com o tempo e torna a saltar". Mas elas dão mesmo um pulo, é? "Eu sei lá, nunca vi nenhuma a parir." Mas elas andam muitas por aí, soltas. "São mistérios. E por que é que a cal com a chuva racha, abre e mói? E também é uma pedra".

Uma espécie de menstruação

Francisco Tavares, dono de gado miúdo, da 19.ª de Comandos de Moçambique, "aquilo sim, explorava-se água nas matas para beber e aparecia petróleo", tem opinião: "Não saltam nada, nascem lentamente. Vão-se agarrando por elas próprias". Elas são as jogas, a que os miúdos de Castanheira chamam ovelhas e os geólogos designam por encraves. "Têm fermento dentro, em granito. E é esse fermento que as faz engordar. As pequenas ficam grandes e prontas a parir. Depois é que elas vão deixando rasto...".

A explicação parece-lhe difícil: "A especialidade que as faz engordar e engrossar é a bolha de granito que têm dentro. Deixam fermento de umas para as outras e continuam por aí além sempre a parir. A sair da rocha e a parir". Será? "Nós praticamente não sabemos nada disto. Quem nos explicou foram os ingleses e os americanos e os alemães, engenheiros-doutores que andaram por aí a estudar. Eles disseram que com o poder do engrossamento elas explodem, derivado à natureza do clima, do sistema solar, eu sei lá...". Insiste: "E isso por causa do fermento que têm dentro, um granito especial mesmo, uma espécie de menstruação".

De avião
A NM foi à Castanheira. É sábado, manhã cedo. A aldeia, 50 moradores e uma dúzia de casas, parece deserta. Está tudo para o campo: um tapete verde cortado por muros irregulares e baixos de pedra solta. Nas estrada asfaltada que dá acesso ao povoado, só se vê Manuel Tavares, velho agricultor a rondar os 90 anos. Anda ali, por força "da trombose aqui deste lado há quatro anos". Caminha sem parar, para trás e para a frente, parece uma sentinela sem quartel. Uma seta pintada à mão, aponta à esquerda: pedras parideiras. E elas estão logo ali, junto à estrada. Afagadas pelo tempo, pela chuva, por pés curiosos, pelo rodado de jipes e de motos, em ralis de Verão. "Pedras sem dono. Caminho para passar vacas e gado miúdo", no dizer de Manuel Tavares.

Dali, as parideiras trepam em direcção à crista da serra, num lajedo íngreme de granito maciço. Para um leigo, à primeira vista, aquele é um granito igual a todos os outros. Só depois, de mais perto, se descobrem nódulos arredondados de mica preta, as jogas, à flor da rocha". Dantes, as pedras parideiras também se derramavam para baixo, para o coração da aldeia, como um rio de granito em turbilhão, bordejado de casas. Agora, ao fundo de uma estrada de paralelo, já perto dos terrenos de cultivo, a residência do presidente da Junta: "Antigamente aqui só passavam praticamente cabras. Existiam só as pedras parideiras, um filão delas. E, de resto, não passava mais nada. Uma pessoa que quisesse vir de automóvel aqui à beira de minha casa, não passava. Por isso eu tive que rebentar com elas. Teve de ser assim. Eu não podia vir de avião".

Antes que seja tarde
Aos poucos, Castanheira está a conciliar-se com as suas pedras. Está a aprender a coexistir com elas. A compreender que afinal há lugar para todos na aldeia. Para o povo e para as pedras. E que ambos são lá necessários.

"Eu gostava de preservar isto. Para mim é um património". Quem o diz hoje é o presidente da Junta da terra. António Tavares José já escreveu à Câmara de Arouca a pedir a tomada de medidas para salvar o que resta das pedras parideiras. "E depois disso até já falei com o presidente da Câmara que me disse "sim senhor, estava a pensar nisso e em mandar fazer uma vedação". Esta ideia corresponde ao que pensam as pessoas na Castanheira. Acham necessário, no mínimo, instalar uma cerca nos afloramentos mais importantes "de maneira a que o pessoal de fora não pudesse levantar pedra. Ao menos nas melhores áreas".

Fernando Noronha, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, é de opinião que a autarquia de Arouca e o povo da Castanheira são entidades fundamentais para ajudar a salvar estes "importantes monumentos geológicos: coisa rara que não se pode deixar destruir". E diz-se mesmo completamente disponível para, com o Centro de Geologia da sua Faculdade, proceder a uma correcta inventariação da área a proteger e dar parecer sobre a melhor forma de actuar.

No domínio das acções a empreender, Fernando Noronha acha prioritário esclarecer as populações e a autarquia sobre o valor e a importância do património em risco. E sugere, na linha do que se faz lá fora em determinados trajectos geológicos, que na Castanheira sejam por exemplo instalados grandes painéis onde, com palavras simples, o fenómeno seja explicado ao grande público. Uma coisa é certa: algo tem de ser feito, e com urgência. Antes que seja tarde.

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VIAGEM FANTÁSTICA

Para Fernando Noronha, professor catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, a chave para a compreensão das pedras parideiras aconselha a fazer uma fantástica viagem no tempo: "Temos de imaginar uma coisa com muitos milhões de anos. Se tivermos essa capacidade, podemos ver uma rocha desde a nascença quase até à morte. Simplesmente ela nunca morre, porque reincarna noutra. É um ciclo litológico". E conclui: "Como há rochas ígneas, rochas sedimentares e rochas metamórficas, elas nunca morrem. Uma quando acaba dá lugar a outra".

Nesta ordem de ideias, e segundo a interpretação de Fernando Noronha, o granito da Castanheira, aquando da sua formação ou instalação, terá agregado no seu seio restos de rochas preexistentes. Esses materiais deram origem a formações nodulosas de predominância biotítica (encraves ou jogas). Já depois disso, há 320 milhões de anos, o granito terá sofrido poderosas deformações. As pressões que estiveram na origem deste processo exerceram-se também sobre os encraves e determinaram o seu achatamento.

Entretanto, as massas graníticas que afloram à superfície do solo vão-se, nos nossos dias, desagregando e libertam os encraves. Afastada está a ideia, muito enraizada entre o povo da Freita, de que seriam os encraves a fazer, no presente, uma espécie de migração do interior do granito até à superfície da rocha. "Essa do nódulo migrar, sair do seio da pedra para saltar cá para fora, isso não. A pedra pare aquilo porque tem lá aquele corpo estranho. A pedra racha e parte - porque tem uma foliação bem marcada - e nessa altura o nódulo sai". E Fernando Noronha conclui: "O partir do granito é que vai libertar os seus prisioneiros que são os encraves, processo facilitado pela acção erosiva".

Na mesma linha interpretativa está o estudo dos geólogos Carlos Teixeira e Torre Assunção, da Universidade de Lisboa, publicado em 1954. As pedras da Castanheira são aí caracterizadas "como rocha granítica com numerosos nódulos biotíticos em forma de discos circulares ou de medalhões (...)". Através da erosão do granito, explicam, esses nódulos de biotite (mica preta) paulatinamente afloram à superfície da rocha, desprendem-se e vão-se acumulando no solo. "Por isso, os camponeses da região chamam à rocha "a pedra que pare pedra", isto é, a rocha que produz uma outra rocha".

in Notícias Magazine, 16 de Maio de 1993; http://reporter.canalblog.com/archives/2006/11/index.html

Dos grilos 3

À Mariana

A caça ao grilo é uma especialidade venatória, um tipo de caça grossa, a seu modo. Exige perícia, adestramento. Muita sensibilidade, delicadeza. E longo trabalho de campo. Tal como para fera de África, esta valência cinegética dispensa licença, ao contrário da banal caça à perdiz, ao coelho, ou da pesca à linha.

A abordagem da peça faz-se ouvindo, com ventos contrários, pés a levitar. A acção decorre no tempo quente, que, no frio, enrouquecidos, os grilos migram para o ventre terrestre, em busca do calor do magna. E ressuscitam na época canora.

Misteriosamente.

O canto é a suprema qualidade do espécime. Na Natureza abundam outros cantores: ralos, cigarras, camponeses na ceifa. E, modalidade luminosa, os pirilampos. Os grilos canoros têm dois rabos; com três tornam-se ensimesmados, melancólicos, não cantam: chamam-lhes grilas. Também pútegas e outras aleivosias. Quando albinos, dizem-nos grilos brasileiros. Todas estas espécies escavam entre a erva uma toca, bastante redonda, de pequeno calibre.

Para o exercício cinegético, utiliza-se uma haste vegetal, que, depenada das derivações, se transforma na arma poética usada pelo caçador à porta da lura, cócegas delicadas, tal qual mãos apaixonadas no ouvido da namorada. Até ao êxito ou fracasso da abordagem. Como no amor.

Desafio de monta para qualquer um, aos sete anos. Às vezes menos.

Augusto Baptista, in reporter.canalblog.com/

sábado, 8 de maio de 2010

Permuta
De tanto convívio, ele acabou por aprender a falar francês; ela, a francesa, à mínima réstea de sol, postada à janela, ronronava.
In O Caçador de Luas, Augusto Baptista, gatopardo 2003

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Humor ao alto

Humor ao alto XII

Cavalhadas

Cavalhadas na Beira Baixa
Augusto Baptista

Em Monforte da Beira e no Rosmaninhal, freguesias raianas vizinhas do Tejo, o povo festeja o S. João (23 e 24 de Junho) de um modo especial. O santo é aqui agarrado pela família do Alferes e dos Padrinhos – gesto devoto, cada ano renovado – o que incendeia a noite em galopes de fogo, alvoroça os dias com disputas hípicas e cortejos gordos de cavalaria[1].


Rosmaninhal cada vez mais longe, o carro a galgar, veloz, Castelo Branco ainda distante. Ensonado, oiço o motorista a falar da vida, da região, da falta de mão-de-obra, da desertificação, deste tempo de oportunidades perdidas. E do negócio das ovelhas e do queijo, que junta à exploração de um café, e ao carro de praça, e às boas perspectivas na venda de materiais de construção. Demasiadas frentes de trabalho para um homem só, mais a mulher, que os filhos saíram da terra.
E a paisagem a fugir para trás, como o tempo, eu, atenção concentrada para a frente, na ideia de apanhar a camioneta das nove da noite em Castelo Branco, para arribar no Porto ao alvorecer, após três horas de espera em Coimbra.
Foi curta a passagem por Monforte da Beira e pelo Rosmaninhal, onde só um motivo forte — uma festa especial, as Cavalhadas — me poderia trazer a lugar tão raiano, Tejo a cingir a cintura da nossa geografia.
Das Cavalhadas tive notícia pelos escritos de Jaime Lopes Dias, a que Azinhal Abelho deu eco nos anos 70 (Teatro Popular Português, IV): «Representações populares das mais alegres e movimentadas, as cavalhadas fazem parte do ciclo festivo do S. João e realizam-se, ainda hoje, nas povoações de Monforte da Beira (Castelo Branco) e Rosmaninhal (Idanha-a-Nova) (...)».
Na região, outro é o entendimento: «Para o Rosmaninhal, Cavalhadas significa a tradição de partir os púcaros, esse tipo de jogos, na festa de Agosto. Como designação da festa de S. João Baptista, Cavalhadas é um termo novo, vindo de fora», opina Mário Chambino, autor de um estudo recente sobre o evento, no Rosmaninhal. Por perto, cavaleiros a toda a brida, correm a argolinha. «Destas corridas, diz-se aqui que é tirar o galo. E quando os cavalos andam na rua com a bandeira do S. João, a isso chamam a volta».
É também esta a perspectiva que surpreendi em Monforte da Beira. Diz Luís Matos Pires, o Cotovio, criador de cavalos: «As Cavalhadas aqui é partir panelas de barro, a 15 ou a 16 de Agosto. As panelas têm lá dentro um pombo, uma rola, água, cinza, o que calha... e o cavaleiro leva com tudo em cima. Estas festas, agora, não são Cavalhadas, são procissões do S. João».
A coincidência de opiniões coexiste com uma grande proximidade de procedimentos, no modo de fazer a festa nas duas povoações. E o curioso é que, quer em Monforte, quer no Rosmaninhal, uns não conhecem a festa dos outros. Como se os dois povos, tão perto, vivessem de costas voltadas.

Encoste-se aqui

A vinda à Beira Baixa impôs plano. Como ir, onde ficar? Quando se viaja em transporte público, o país cresce. O tempo dilata-se. Tudo se complica. É preciso ponderar a acção, calcular os gestos, medir os passos. Porto - Castelo Branco, com escala em Coimbra, são cerca de quatro horas e meia de autocarro expresso. De comboio seria bem pior: obras na linha, em certos troços da Beira Baixa, opções de horário reduzidas.
Pernoito em Castelo Branco, 22 de Junho de 2001. Pela manhã de 23 rumo para Monforte da Beira, carro de aluguer: três contos e duzentos para vencer uma vintena de quilómetros. Cá chegado, ataco um pão com presunto, mais ornato do que substância. De faca e garfo, só de encomenda se almoça aqui.
Complicada, a dormida. Onde ficar? Quartos para alugar, não há. Destino é o relento, máquinas fotográficas a servir de travesseiro, ou uma ida para Castelo Branco, ou para o Ladoeiro, madrugada alta. E transporte? Na encruzilhada, vale a disponibilidade dos festeiros: «Encoste-se aqui, se quiser. Não repare, nem ligue ao barulho. Vai ser a noite toda».
São três da tarde. Encostado, estou em casa dos festeiros (gesto nobre, que agradeço), naquela que é hoje a rua principal de Monforte. Júlio Teixeira e a mulher, Maria Manuela, emigrantes em França, vieram de propósito de Tours para pagar promessa. Agarraram o S. João, agora têm de fazer a festa: garantir a sagração do santo conforme as tradições, assegurar os comes e bebes, a música ao vivo no arraial, enfim, demonstrar, na prática, que foram e são merecedores da benfeitoria.
S. João Baptista está representado em um estandarte que os festeiros desfraldarão à janela de casa. E que, em cortejo hípico encabeçado pelo Alferes e dois Padrinhos, será depois levado em repetidos percursos pelo povoado, itinerários e horas que a memória guarda.
Alferes é Tiago Oliveira, encorpados 17 anos, filho do casal de festeiros, igualmente em Tours, também ele daí vindo de propósito para levar a bandeira. Padrinhos são os genros Luís Carvalho e Luís Furtado, ambos a viver em Lisboa.
A alma da casa é Paula Carvalho, irmã do Tiago e mulher do Luís Carvalho. Estudou a festa, a tradição, industriou-se ao pormenor sobre o que fazer e como fazer. E fala do assunto com sabedoria. Sem hesitação, sintetiza o programa, deixa antever as atribulações que me esperam.
Daqui a pouco, o S. João virá para a janela da casa — elucida Paula. Nessa altura, o povo e um grupo de cantadeiras, a tocar adufe, darão as boas-vindas ao santo. À noitinha, haverá uma volta de cavalos ao povo. O S. João sai da janela e será levado pelo Alferes, pelos dois Padrinhos. «Atrás segue o acompanhamento: pessoas em cima de burros e de cavalos. Tudo a correr as ruas, a saltar fogueiras, a dar vivas ao santo».
O programa das festas, ainda em 23, irá completar-se com arraial: «Sardinha assada grátis, as bebidas ao preço simbólico de cem escudos, conjunto musical». Amanhã, o cortejo sairá pela manhã, «sempre a andar devagarinho», adverte Paula. À janela, as pessoas porão fitas na bandeira, darão dinheiro. Depois da missa, à tarde, o S. João voltará a sair: vai à Devesa, às corridas de cavalos, de burros e de gente a pé. Ganhará um galo quem primeiro chegar à meta. Para rematar a festa, diz Paula: «Vão todos para a porta da igreja. O S. João, a bandeira, é entregue aos festeiros do próximo ano. As senhoras do adufe cantam e, à noite, já corre tudo por conta dos novos festeiros».
A família da Paula agarrou o S. João por razões de saúde. No concreto, a mãe, Maria Manuela, «muito nervosa, prometeu se o simples tremer das mãos lhe passasse, daria a festa. Isso aconteceu, ela cumpriu».
Em Monforte, nos próximos dez anos, o santo já está agarrado. «Antes, as pessoas que tinham promessa iam para a porta da igreja disputar a bandeira. Mas não era rentável. Uns ficavam com o pau, outros com o pano. Só quem ficava com o bocado de tecido é que dava a festa. Era um prejuízo. Então arranjaram uma listinha, de boca em boca», esclarece Paula.
A confirmar o programa, ao fim da tarde, S. João Baptista — modesta estampa 30x40 cm, afixada ao estandarte — assoma à janela pelas mãos de Maria Manuela, pagadora da promessa. A rua enche-se. As mulheres atacam os adufes, as pandeiretas. E as cantigas.
Surpreendente é o pormenor com que estão regulados, por herança costumeira, todos os passos e preceitos da festa. É o profano a imitar a ritualização do sagrado. As voltas do S. João têm trajectos definidos, há sítios próprios para implantar as fogueiras. E há procedimentos consagrados bem curiosos: a bandeira do S. João não entra, não sai, pela porta da casa do festeiro: só pela janela pode circular; quando o estandarte do S. João anda na rua, nas mãos do Alferes, o sino não pára de tocar; após as voltas, os cavaleiros ungem com vinho a cabeça do burro ou do cavalo; e há formas, fórmulas e nomes específicos para designar a doçaria de S. João: broas, biscoitos, bolo dos santos, borrachão. Todos estes doces têm uma função principal: agraciar quem na terra ajudou os festeiros a suportar despesas e canseiras.
Alguns usos definharam. É o caso da disputa da bandeira no adro da igreja, para agarrar o S. João. «Também havia uma promessa que só uma égua branca podia levar o Alferes e o estandarte. A senhora faleceu, agora vai branca, preta, o que aparecer», assegura Manuel Pinheiro Sanches, Manuel Brasileiro, 65 anos, reformado do Arsenal do Alfeite.
O essencial da festa mantém-se inalterado, embora — lamenta Manuel Pires Freire, presidente da junta de freguesia — «Antigamente isto estava tudo aí cheio de cavalos... cavalos e burros. Ruas cheias. Agora, nem metade. E também dantes havia muito mais fogueiras». Razões? «Isto está desabitado. Tem para aí morrido gente que é o fim do mundo. E quem sabe a tradição são as pessoas antigas, não é a mocidade. Os novos gostam de ver; fazer, não fazem!». Mas, este ano, o Alferes é muito novo e veio de França, contraponho. «Quando falo de mocidade, não é um ou dois».

Galopes de fogo

Bandeira de S. João à janela, dadas as boas-vindas ao santo, a expectativa centra-se na noite, anunciada por esta gente grudada às portas, às esquinas, em grupo. À espera. E por braçadas, montes de palha e rama prontos para a expiação. Tento saber ao certo o itinerário do cortejo. Colho informações desencontradas. Na impossibilidade de desenhar um trajecto preciso, decido-me por procurar um ponto fixo de observação, na esperança de conseguir daí um registo, um fotograma só que seja, para ilustrar o acontecimento — correndo o risco de acabar assado pelas estafermas labaredas que me pintam: imolação sem glória nem eco, mesmo nas crónicas locais.
«Chama grande! O importante é chama grande, fogo rápido, para fazer parar o S. João!», diz o presidente da junta. E, olhos a arder: «Força de quentura! Aqui o que a gente quer é logo força de quentura!». Ademais, fico a saber, «já tem havido anos em que muitos caem das bestas, partem braços e coiso... O animal vai a correr, escorrega, tropeça, cai no fogo».
Versado em fogueiras é também Manuel Brasileiro, grandes olhos por detrás das lentes: «Vai-se ao mato, traz-se giestas, charras, rama de fava, põe-se aqui à laia de uma choça, dois paus, depois tudo em volta... e pega-se fogo». Perspectiva de céu em labaredas, «dantes as fogueiras eram pegadas umas às outras, desde a igreja até aqui», eu sufocado, um bendito hálito repressivo: «Agora é tudo mais oprimido. Temos cá a electricidade». Mas o que tem a ver a electricidade com as fogueiras? «Os fios! Quando cá puseram a electricidade, as pessoas esqueceram-se... e os fios andaram por aí a arder».
Abrasado pelos relatos, monto arraiais num terraço, providencial espaço altaneiro sobre estratégico cruzamento. De repente, já eu em cota alta, à voz «Aí vêm eles!» alguém na estrada ateia fogo a um molho de palha e rama seca. Como pólvora, as labaredas explodem, alterosa «chama grande». Mãos ígneas agarradas aos fios, aos fios da electricidade, o fogo! Estrelinhas e faúlhas a voarem em todas as direcções, eu dentro da «força de quentura», alvoroçado. Baforada benfazeja verga as chamas. Elásticas, lambem o chão, a estrugir. No meio, alguém baldeia água. No frenesim, rente à parede, entre gritos «Viva o S. João!», clamores roucos «Viva a bela sociedade de Monforte!», cavalos à arreata, passa o Alferes, passam os Padrinhos, passam os cavaleiros. Tudo a correr, tudo a galope, sempre a passar. Como um relâmpago!

Então isto é que é saltar a fogueira do S. João?!

Deitado sobre a cama, roupa vestida, fecho os olhos, a flamejar ainda. Porta fechada, o quarto, interior e quente, sugere-me um micro-ondas. Lá fora, rés à fachada, o arraial! Na rua, plena de música, gente a dar ao pé, a beber. Em bando, jovens cortam as voltas a Morfeu, gozam a festa. À rédea solta!

S. João era bom homem
Se não fosse tão velhaco
Foram três moças à fonte
Foram três, vieram quatro.

«Claro que é uma festa religiosa!». Victor Beirão, jovem padre, em Monforte da Beira «vai para cinco anos», não tem dúvida sobre o carácter cristão do evento. Vê, aprecia, acompanha os festejos, em comunhão com o seu rebanho, diverge dos párocos que, noutros tempos, em conflito com o povo, «acharam que isto eram coisas emocionais, sem grande racionalidade, e queriam deixar de rezar missa».
Pessoalmente, diz, valoriza o lado emotivo da vida, distancia-se «de uma geração de padres que deixou de ligar importância aos símbolos e tornou os encontros e as práticas cristãs um bocado maçadoras, só à base de discursos, papelada, burocracia e muita conversa».
Nesta base, defende um sacerdócio próximo das pessoas concretas, «que não sabem fazer discursos, mas falam com o coração e se arrepiam quando passa o Alferes com a bandeira». Se arrepiam e choram, testemunha Paula Carvalho: «Eu vejo a bandeira à janela, fico toda arrepiada. E não consigo parar as lágrimas. Vêm de dentro. Não faço força, é assim uma coisa mais forte do que eu».
Este arrepio sente Joaquim Pires, o festeiro para 2002, chefe de estação da CP, na reforma: «S. João Baptista é milagroso». Emociona-se: «Acredite, S. João Baptista na minha casa fez um grande milagre». Em consequência, ele e a mulher, Maria da Conceição, decidiram levar para a frente «esta festa que condói o coração», festa de pobre, a bem dizer: «Os ricos nunca deram o S. João. Talvez a miséria não cuide tanto a eles», suspeita Joaquim.
Na volta grande da manhã de 24, a bandeira de S. João vai «aos cantinhos todos do povo», ritmo marcado pelo tambor de José Grilo, 39 anos, pedreiro: «Ando à frente da eguada a tocar, para chamar a atenção das pessoas». O cortejo anunciado abre com o Alferes, bandeira ao alto e, vela apagada na mão, os Padrinhos. Segue-se, compacta, a devota coluna de cavalaria. As pessoas assomam às janelas, às varandas, dão sonoros vivas a S. João. Emocionadas. Arrepiadas. Prendem fitas votivas no estandarte, e notas: contos de rei a drapejar.

S. João é meu irmão!

Presenciada a volta da manhã em Monforte, demando o Rosmaninhal. O trajecto cumpre-se numa paisagem sem sobressaltos, planície macia de vegetação rasteira, o mais das vezes. João Pires, o taxista, fala da sua exploração agrícola, que verdeja algures na ponta do dedo a atravessar o pára-brisas, e discorre sobre enigmáticos roubos de fardos de feno nos campos, desaparecimentos sem rasto de cortiça nos sobreiros. No seu caso, até o fumeiro, o aprimorado salpicão que a família guardava na adega, levou sumiço.
A bordejar o asfalto, plantações de tabaco em regime extensivo e, anunciada por um cercado metálico persistente, uma reserva de caça «de um tipo do Norte». Ronda as duas da tarde, chego ao Rosmaninhal.
A esta hora estão os festeiros e convivas no bodo. Na planura do campo da bola, uma edificação de aparência gimnodesportiva, pegada de cernelha por um toldo de malha rala. Sob a luz coada, duas compridas mesas, bancos corridos.
Não são muitos os convivas. Pelos lugares vazios, pela quantidade de comida a sobrar nas panelas bojudas, tripé de ferro, imperativo é concluir que muita gente faltou ao almoço: lamentável desencontro de meios e de repastantes, face à magnificência do ensopado de ovelha, obra poética de um colectivo de cozinheiras, a esturricar ao sol do descampado.
Este ano faltou a banda, na festa do Rosmaninhal, onde — ao contrário de Monforte da Beira — «a música é uma coisa principal». Por isso, a «fraqueza da festa», o decréscimo de adesão, até no bodo. Na explicação do caso, há quem arrisque mais longe: «Isto é uma festa de família, uma festa de promessa. Se a família é mais ou menos abastada, a festa tem mais ou menos força». O S. João, este ano, opinião dominante, «não é como devia; mas fizeram, e isso é bom».
Os próprios festeiros não escondem o constrangimento de as circunstâncias os terem impelido a ir para a frente: «Um familiar nosso agarrou o santo. Chegou a altura da festa, não quis. Ficámos com o povo às costas». Por razões de honra, pai Domingos, filhos João e Luís, todos Correia, já com dois S. Joões no activo, reincidiram.
A promessa antes feita pagava benfeitoria gorda, confessa Luís, 42 anos, o Alferes: «Tinha ataques, ficava como morto no meio do chão. Eram precisas três e quatro pessoas para me segurar. E santo S. João tirou-me a doença toda». Um caso assim fundou laços de sangue: «Santo S. João é meu irmão!».
João, um dos Padrinhos, tractorista, «a máquina é minha», também já resgatara a promessa da perna partida. Elisabete Caldeira, prima de João e de Luís, que na festa faz o papel de segundo Padrinho, está na idade em que nada há para expiar: 14 anos.
Após comerem, Alferes entre Padrinhos, rente às seis, é dada a volta da tarde, cortejo equestre a rondar o povo, a prenunciar as disputas a cavalo, na antiga canada do Espírito Santo. Em boa verdade, esta versão beirã da corrida da argolinha — tirar o galo, aqui se chama — foi a grande razão da minha vinda.
De resto, no plano formal, impera a similitude entre festas, com umas quantas disparidades. Citem-se algumas: «Para o povo do Rosmaninhal a banda é que representa o S. João»; na volta da manhã, hoje depois da missa, «aqui vai padre, vão quatro andores, o santo, e os cavalos do Alferes e dos Padrinhos»; por fim, em Monforte, a tiragem do galo faz-se por corrida, a cavalo ou a pé, disputas de dois, para ver quem primeiro chega à meta.
Serão agora à volta das sete da tarde, no Rosmaninhal. A declinar, o sol deixa em contra-luz os cavaleiros. Partem da zona baixa da rua, cavalos em sonoro galope sobre o empedrado, sempre a subir. O povo cose-se à borda poente da estrada, trepa os muros que limitam os dois lados. Aos 200, 300 metros de desvario, os cavaleiros alçam-se no estribo, vara na mão. Ânsia quase sempre a desmaiar em frustração, ao passar a corda. A corda alta que atravessa a estrada: pendentes duas humildes argolinhas, enlace de ramo de oliveira, boca de dez centímetros, quando muito.
Sobre a corrida da argolinha no Brasil, Luís da Câmara Cascudo diz que o simpático elo, a argolinha, é ali apreciado troféu, oferenda com que os dextros cavaleiros distinguem personalidades, moças, senhoras. Mais garante: no imenso Brasil popular, corre-se argolinha desde o século XVI (Dicionário do Folclore Brasileiro, 1954).
No Rosmaninhal, argolinha resgatada não tem estatuto, não tem poesia. É uma coisa: serve só para tirar o galo. Neste particular, o Brasil nos ganha. E na idade? Em que século, desde quando se persegue argolinha na Beira Baixa? Vale-me anónimo testemunho, na hora da despedida: «Isto tem muito ano. Os S. Joões aqui nunca acabaram!»

Cavalhadas em Português

Cavalhadas são actividades festivas de cavalaria, versão popular das justas e torneios: jogos guerreiros que outrora serviam para a nobreza aprimorar a prática das armas, adestrar capacidades nas montadas, passear vaidades e louros, diante de fermosas donzelas[2].
No século XIX, as Cavalhadas eram também designadas por Torneios à Antiga, Jogo das Justas, Encamizadas de S. João. Realizadas com pompa e cor, incorporavam um vasto programa de actividades: cortezias, corrida da argolinha, encenação das velhas lutas cristãos-mouros, corrida do estafermo, jogo de canas... [3 e 4]
Alusão burlesca às Cavalhadas eram os Cavalinhos Fuscos, espectáculo outrora vulgar nas áreas rurais e que animou a Praça de Évora, «para denegrir a Decencia de huma cidade digna de melhores Cabeças», em 7 de Agosto de 1814: «Vinte e quatro homens de unha negra e enserolada, montados nas ruins Bestas de suas Pessoas, com ancas sobrepostas de mal arranjados trapos, e com pescoços e cabeças de Cavalinhos, amarradas ao baixo ventre, com jaquetas, e xapelinhos muito guarnecidos de ouro-pele, nastros, trançadeiras, penaxos e guizos, fizerão hum arremedo do Jogo das Justas, pela parte do burlesco, e da redicularia.» (Teatro Popular Português, VI, Azinhal Abelho).
Aos nossos dias, e a certos lugares, chega a palavra Cavalhadas, remetendo o conceito para sobrevivências locais de algumas das facetas dos exercícios equestres que incorporavam os Torneios à Antiga, designadamente a corrida da argolinha. Noutros lugares, a palavra adquiriu o nexo lato de acontecimento festivo, cariz profano ou religioso, com algum protagonismo hípico: desfile, procissão, cortejo. Noutros lugares ainda, a designação perdeu-se, mas sobrevivem traços da velha realidade das disputas e dos desfiles de cavalaria.
Nos Açores, ilha de S. Miguel, freguesia de Ribeira Seca, as Cavalhadas de S. Pedro (29 de Junho) são vistosos desfiles de cavaleiros e suas montadas, no pagamento de promessas ou, simplesmente, pelo gosto de participar.
Em Vildemoinhos, Viseu, Cavalhadas são as festas que decorrem durante três dias, por ocasião do S. João, com ponto alto no cortejo de 24 de Junho. O desfile abre com um grupo de seis cavaleiros: dois embandeirados e vestidos a rigor — os mordomos —, quatro vestidos "à povo". A eles hoje se junta um numeroso grupo de cavalaria. O grosso da coluna festiva é, no entanto, constituído por carros alegóricos. E há bandas, fanfarras, ranchos, coches à antiga.
Em Crasto, S. João da Ribeira, é dado o nome de Cavalhada à ida a Ponte de Lima de uma ou duas carroças, puxadas a cavalo, no último dia de feira na vila, antes da realização do "Auto dos Turcos". Em Ponte de Lima, há desfile: dois Soldados, dois Vigias, dois Porta-bandeiras, todos a pé; na carroça, vão os dois Reis (Cristão e Turco). A Cavalhada só se realiza nos anos em que há "Turquia" em Crasto e visa anunciar o evento.
No Rosmaninhal e em Monforte da Beira o termo é popularmente associado aos jogos tradicionais que constam do programa das festas de Agosto (cavaleiros em busca de prémios, partindo bilhas de barro).
Em Cantelães, Vieira do Minho, cavaleiros montados em garranos a galope disputam um cabrito, procurando enfiar uma vara numa pequena argola de ferro (com cerca de quatro centímetros de diâmetro), presa a uma corda. A tal função, que ocorre obrigatoriamente na Festa do Senhor (18 a 20 de Agosto), chama o povo da zona: corrida ao cabrito.
Em Pedroso, Vila Nova de Gaia, no mês de Agosto corre-se a argolinha e há competições hípicas promovidas pela Associação de Criadores e Proprietários de Cavalos de Corrida do Norte de Portugal, sede em Serzedo, no quadro das festas de Nossa Senhora da Saúde.
No Bunheiro, Murtosa, distrito de Aveiro, corre-se actualmente a argolinha, mas não a cavalo: de bicicleta! Antigamente – segundo testemunho de António Joaquim Matos, 79 anos, natural da terra e reformado da Marinha Mercante – as disputas faziam-se a cavalo e já também de bicicleta, na rua, em ocasiões festivas. E havia as pateadelas: «andavam ali a correr a cavalo com umas lanças, até cortarem a cabeça dum cabrito pendurado numa corda». Correr a argolinha hoje no Bunheiro, conforme as disputas a que assistimos na Casa-Museu Custódio Prato (Maio de 2003), consiste num jogo em que vários ciclistas tentam, sem pousarem o pé no chão, enfiar um arame com cerca de meio metro, ponta de 2 centímetros dobrada em ângulo recto, numa pequena aliança de plástico. O êxito da tentativa é premiado com uma argola de pão de Valongo.
No Ribatejo, segundo informação da junta de freguesia de Arneiro das Milhariças, aqui e noutras aldeias da zona, «por altura dos festejos do Mártir S. Sebastião, no dia 20 de Janeiro, (...) jogava-se muito o jogo das cavalhadas. E, caracterizando a actividade, que no Arneiro durou até 1933: «Este jogo consistia em se atravessar na grande rua uma corda com argolas, onde se punham bilhas com água, urina, gatos, coelhos, etc». E, adiante, precisa-se que as Cavalhadas se jogavam a cavalo, cavaleiros munidos de «pau ou uma verdasca, para em corrida atirarem às bilhas e às argolas».
No Algarve, José Martins Canário, 78 anos, protagonista em jovem, no Pechão e em Bela Curral, do "Combate dos Mouros e Cristãos", disse-nos em 2002: «Na festa do Pechão, quando eu era moço, havia cavaladas, corridas de cavalos, tirada de frangos com cavalos. Era à tarde, no Verão, na propriedade, tudo seco... Atravessava-se uma corda e punham lá... sei que aquilo tinha uma argola qualquer e eles levavam um pauzinho na mão, tentando enfiar. Quem conseguisse, tirava o prémio. Não sei se tinham os frangos mesmo pendurados, já não me recordo. Chamavam a isto a tirada de frangos».
Também chegaram a Cabo Verde, e aí sobrevivem, as Cavalhadas. Nas festas de S. Filipe, Ilha do Fogo, Cabo Verde, realizadas anualmente entre 26 de Abril e 1 de Maio, os cavalos são presença apreciada, indispensável: participam na procissão religiosa (cavaleiros embandeirados, camisa branca, calça preta), há corridas junto ao aeroporto, torneios e brincadeiras hípicas no Largo de S. Pedro, a 1 de Maio (sacos de terra, cinza, rebuçados). Há argolinha: «É posta numa corda, entre dois postes aqui no largo. Os cavaleiros vêm a correr, começamos daqui, eu sou um deles também, apanham a argolinha com a ponta de uma vara e levam-na. A argolinha começa com um diâmetro de mais ou menos 10 centímetros e depois metem uma grande, que os cavaleiros apanham com a cabeça» – confia-nos em Setembro de 2005, no Fogo, Carlos Alberto Monteiro, cavaleiro e entusiasta da festa.
Ao Brasil, a partir do século XVI-XVII, e saídas de Portugal, arribam as Cavalhadas: justas e torneios, corrida da argolinha, luta encenada dos Doze Pares de França contra os Doze da mouraria... Este corpo cultural disseminou-se no vasto território brasileiro, incorporou o imaginário popular, ganhou estatuto de folgança, assumindo hoje – com caldeamentos vários – matizes regionais diversificados.
Em Pirenópolis, Goiás, as Cavalhadas são o apogeu da festa do Divino Espírito Santo. Durante três dias, batalham cavaleiros mouros e cristãos, 12 de cada lado. Na corrida da argolinha se centra também muita da animação da festa, com os cavaleiros em disputas de destreza e a oferecerem cada argola resgatada às entidades presentes.
Ainda em Goiás, estes festejos animam Jaraguá, Santa Cruz de Goiás, São Francisco, Corumbá, Palmeiras... Mas, representadas em diferentes ocasiões e em muitos Estados, no imenso Brasil popular, as Cavalhadas pulsam desde tempos antigos. No Nordeste, delas só consta a corrida da argolinha. Outras têm cariz de cortejo, com propósitos religiosos. E há as que integram um príncipe e a filha de um rei turco, princesa donzela: Floripes, a quem outros chamam Floripa.

Notas

[1] Esta reportagem refere-se aos festejos em honra de S. João Baptista, no Rosmaninhal e Monforte da Beira, Junho de 2001. O apêndice "Cavalhadas em Português" complementa a reportagem. Estes dois textos foram publicados em “Praça Velha - Revista Cultural da Cidade da Guarda”, ano IX, n.º 19, Junho 2006, págs 259 a 269.

(2) Sobre as Cavalhadas e sua génese entre nós, escreve Guilherme Felgueiras: «As justas e os torneios, precedidos com frequência de representações mímicas e bailados, vão criando adeptos entre os nobres e cortesãos que, divertidamente, se adestram com tais jogos bélicos ou de destreza, em simulados campos de liça. Imitando até certo modo os torneios, surgiram mais tarde as canas, que, por sedimento, derivaram nas cavalhadas de nossos dias, renhidas folganças populares em uso ainda nas terreolas provincianas. Os lidadores – substituídos os ginetes pelos orelhudos jericos e munidos de canas ou de varas – pleiteam prémios suspensos duma corda, no geral um esporado sultão das «capoeiras» – "Teatro", págs. 282 e 324 (corrigenda), in "A Arte Popular em Portugal", 2.º vol., Editorial Verbo, s/ data, direcção de C. Pires de Lima.

[3] Ainda sobre as Cavalhadas, ver "Evora — Jocoza e Circunspecta, Conçorcio do Burlesco e da Decencia ou Narração Historica, Politica, e Diplomatica das Festas de Evora na Paz Geral de 1814 Desde 29 de Julho até 15 d'Agosto Offerecida (...) por hum filho de S. Francisco 1814", in Azinhal Abelho, "Teatro Popular Português", VI, págs. 29 a 41: «Este antigo, e nobre exercício dos bons Cavaleiros Portugueses, que tantos malles trazia consigo, em consequência do dispotismo, da altivez, e do desenfreamento, que os Cavaleiros professavão, desde que se comutavão em agressores, e em bandoleiros; foi nas Espanhas, e na Lusitania que teve o maior auge e o maior esplendor. (...) Temos bem fundadas razoens para acreditar que Evora sempre famoza por suas remotíssimas antiguidades, teria sido o mais brilhante Campo dessas memoráveis antigas justas (...), aonde ainda hoje se conserva, como em nenhuma outra parte, o nobre, o antigo jogo das Justas ou Cavalhadas. São os Lavradores do termo de Evora quem conserva este respeitável resto dos costumes e prendas de seos nobres ascendentes, que de huns a outros passa como herança (...). Eles tem por hum dever de sua antiga nobreza o virem jogar as armas na grande Praça da Cidade de Evora sempre que nela se celebrão Festas públicas, e o fazem pela maneira seguinte – Vinte e quatro Lavradores os mais destros na arte de jogar as Justas montados nas suas melhores Egoas, acompanhados de seus pagens, que levão à déstra outras tantas, e também ajaezadas para se melhorarem quando he preciso, apprezentão se na Praça em duas alas, formando pares de dois em dois, que vem a ser reciprocamente competidores hum do outro. O uniforme dos Cavaleiros, e das armas he em tudo perfeitamente igual, excepto nas cores, que são sempre opostas. Todos vestem calça branca, mas as jaquetas de huns são encarnadas guarnecidas de amarelo, e as dos outros são azuis, bordadas de branco; com a mesma alternativa de cores são as Lanças e os Cocares da Cabeça».

[4] Pelo interesse documental, pela dinâmica narrativa, na sequência da nota anterior e com base na fonte aí citada, transcreve-se mais esta referência ao Jogo das Justas, em Évora, na tarde de 2 de Agosto de 1814: «Postados na Praça em linha de Batalha, ficando à direita os de huma cor, e à esquerda os de outra, elles empunhão as espadas; e sahindo os dois pelo centro, vão formando duas alas alternadas; e a galope solto xegão em frente do Senado, a que fazem as continências; e desdobrando com uma veloz paçagem de mam, sem jamais afrouxarem de galope, voltão, por hum composto de duas paralelas, ao seu primitivo posto, donde tornão a sahir, umas vezes pelo centro, e outras pelos flancos, sem perderem a ordem nem os seus respectivos competidores. Nestas marxas e contra marxas, umas vezes a galope e outras a meja brida, outras a toda a brida, formão circulos, abrem seguementos, descrevem deagonaes, torcem, e destorcem oitos de conta, pação de mão pela direita, e pela esquerda com indizivel velocidade e firmeza. Vibrão as lanças, manejão as Espadas, correm as canas, trespação as argolinhas, cobrem-se dos tiros com os escudos, trespação as aves à ponta de lança e acometem o Estafermo, com hum impetu, huma firmeza, e uma velocidade tal, que não pode descreverse, nem facilmente limitarse, sem que jamais aconteça perderem a ordem, nem diminuirem a galhardia, a beleza e a rapidez».
Augusto Baptista in Cena Lusófona http://wwwcenalusofona.pt/paginas/06edicoes/02edicoes.html