As árvores são ervas que entroncaram, com o tempo. O processo fez-se devagar, por muitos e desencontrados caminhos. Umas a viajar rente às praias, outras a palmilhar chãos agrestes, trilhos de meter medo, solidões. Outras a vaguear perdidas no lume do deserto.
Prisioneiras, pés enterrados, nesta obstinação peregrina deram a volta ao mundo. Mergulharam nos fundos marinhos e aí, despenteadas, dançam entre brisas e correntes. Conquistaram jardins, praças, o centro das cidades. Voando, arribaram a remotos paradeiros: Via Láctea e, talvez, mais longe.
Estas viagens modelaram criaturas bem diferentes. Algumas perfumaram-se, outras esmeraram-se mais no bojo, mais na seiva, no ornato, nos usos medicinais, no aconchego dos ninhos, na doçura dos frutos.
Propensas para as artes, algumas cuidam da harmonia dos veios, do colorido da tez, da macieza do toque, a pensar na talha fina, nos torneados das mesas, no aprumo das cadeiras. Na pele da estatuária. Na ternura dos berços. Outras dão-se à palavra, feitas cartas, livros. Muitas medram cingidas por paixões de namorados, barco a remos a pairar no lago. Outras se fizeram caravela e partiram.
Há árvores que aprimoraram as folhas para tisanas, xaropes, vapores, inalações. As que desvairaram em tamanho, se espraiam em sombra mansa, por quilómetros, o calor a uivar à volta. Grossa copa, muitas se enfeitam de florinha minúscula, cor-de-rosa, branca, azul. Enquanto, débeis, dobradas, miudinhas, algumas penam a amamentar ao colo os filhos, frutos pesados, casca fina.
E há-de-lhes doer – como suspeitou Raul Brandão – há-de-lhes doer brotar, ousar flor, rebentação!
Dor maior lhes causará a indiferença, o mau-olhado, a agressão. A lâmina. Elas a tremer na aragem. Elas sem terem tempo de fugir.
O homem que assim falou rasga a terra, decidido. Uma a uma, com árvores tinge a manhã.
In "o homem que", Augusto Baptista, gatopardo 2008
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