Enigma 3126
Se a bagunça é muita dás corda aos sapatos?
Augusto Baptista
O URRO
Metido em casa, o senhor Leão descuidou-se, andou meses sem ir ao barbeiro. Quando saiu com a mulher fazia juz ao nome.
No autocarro o fiscal implicou. A mulher fez ver, exaltada, que apesar das aparências o marido de Leão só tinha o nome. Salvo quando se irritava.
Estavam neste ping-pong de bolas puxadas, o senhor Leão, de saco cheio, sacudiu a juba, explodiu num urro.
Persuasivo.
Augusto Baptista
BATATAS
Os dois ao balcão à espera da freguesia que tarda, ele a puxar conversa mole para matar o tempo, ela a cortar-lhe as vazas:
– ... até havia um chafariz no largo...
– Havia.
– ... não sei se te lembras, havia ali um cruzeiro antigo...
– Havia.
... e um caminho que ia dar ao monte do ...
– Havia.
– ... nesse caminho havia umas alminhas ...
– Havia.
Enfim, freguesa, em demanda de batatas!
Ela, hirta, leve esgar de queixo apontado para ele, para os tubérculos:
– Avia.
Augusto Baptista
UM AZUL ASSIM...
Dona Fátima chama o mestre-de-obras, dá-lhe a saber a empreitada:
– Quero que o senhor Joaquim me pinte a sala de azul. Um azul assim... fugidio, como o azul que apareceu no céu uma destas noites, um azul que nasça na sala de repente, tome conta de tudo, e desapareça depois com um rasto luminoso. Está a ver?
– Posso tentar, mas isso a bem dizer é um azul impossível.
– Eu vi-o, senhor Joaquim!
– Viu-o no céu, dona Fátima, na sala é diferente. Depois, fica-lhe por uma fortuna um azul assim. Materiais, mão-de-obra... só de tinta, quantas demãos?!
– Os pormenores são com o senhor. A mim interessa-me o azul. Quanto a custos, deixe comigo.
– Posso tentar, sem compromisso, posso tentar...
– Então tente!
– Ó dona Fátima, desculpe, e para que quer a senhora um azul assim?....
– Problema meu, mas já que pergunta... Olhe, é para ver se levada por ele eu apareço longe, feita azul, um azul assim... como o azul da minha sala.
Augusto Baptista
PRECISÃO
Puxou a culatra atrás, bala na câmara, três tiros! Resultado: matou um, abateu outro, liquidou um terceiro.
O morto foi o mosquito que lhe infernizava a noite; o abatido foi o elefante que não lhe largava o ecrã do televisor; o liquidado foi ele próprio com esta história que, francamente... Mas cuidado, senhores da hermenêutica, o sujeito tem pontaria
Augusto Baptista
HÁ DIAS ASSIM
Um dia que dá vontade de riscar do calendário: tudo o que podia correr mal, correu.
À noitinha, de visita a um amigo internado no hospital, mais para lá do que para cá, entrou no Metro, olhar a varrer o pavimento. Sentou-se, encolhido, e então reparou, no banco fronteiro, na jovem enrolada em desalento.
Chegado ao destino, ergueu-se devagar, venceu a hesitação, afagou com ternura o ombro da jovem melancólica e arrancou do fundo de si:
– Desentristeça, é capaz de haver amanhã...
De supetão, ela de pé:
– Entristada ou alegrada, assunto meu. Olha o velho metidiço!
Um dia que dá vontade de riscar do calendário: tudo o que podia correr mal, correu.
Augusto Baptista
É a ternura, é a ternura que nos traz de volta a casa. Obrigado Ana Beatriz!
a.
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