Enigma 2720
No deserto há tempestades em copo de água?
Augusto Baptista
EMERGÊNCIAS BENTAS
O 204 arranca, logo trava. Em desequilíbrio, a jovem de pé enlaça o passageiro do lado. Num novelo aos trambolhões, entre encontrões, caem no corredor do autocarro.
Ela ergue-se num pulo nervoso, balbucia:
– Desculpe, senhor.
A olhá-la debaixo, pasmado, doído, nele emergem nesse instante anos de catequese:
– De nada. Temos de ser uns para os outros.
Augusto Baptista
O GOLPE
Atormentava-o a fome, as privações, a solidão. O passar dos dias iguais, sempre ele com ele, sem amigos, assim sempre assim, desde que ficou desempregado, faz anos.
Um dia, na terra ressequida de um vaso a um canto, vê despontar a esperança, enxerga alguém com quem partilhar a vida.
Olhos no recém-chegado, multiplica-se em atenciosos cuidados. Passa horas em desvelos de rega, em temperanças de luz, fertilizantes e húmus.
Sem frustrar as expectativas, a débil criatura vai crescendo devagar, não tarda a assumir-se no que era de raiz: um garboso pé de couve. De couve tronchuda, precisamente.
A casa ilumina-se. Uma companhia: cúmplice de conversas pela tarde, a exprimir-se no eloquente silêncio vegetal.
A relação entre ambos em crescendo, breve aporta no que alguns chamam paixão. Juntos correm mundo abraçados pela cinta: nos transportes, no cinema, ele furta-se ao bilhete, ela não paga viagem nem ingresso. Nos cafés fazem sala, copo de água a dividir pelos dois.
Os tempos idílicos são fugazes: a tronchuda encarquilha, a pobreza demencia. Uma madrugada, roído pelas privações – olhos fixos na velha companheira – ele acorda em delírios gulosos, desorbitado, na mão sinistra a faca a anunciar o golpe. Ao lume a panela, água a levantar fervura. Estremece. Para que ignomínia o arrasta a fome?!
Agarra com força a faca pelo punho. Agarra com força desmedida a faca pelo punho. E deixa que o gume, imperativo, cumpra o seu destino rumo ao coração.
Augusto Baptista
A CURVA
A conferir-se ao espelho – de um lado, do outro, de frente – o sobressalto: já não dava para iludir a evidência, para disfarçar a sinistra geometria.
Encurralada, para dissimular a malfadada linha, adiar o escândalo, retardar a bomba, decide recorrer a astucioso ardil.
E nessa hora lança mão a asfixiantes apertos de cintas e ligaduras para calar o amor proibido, para conseguir achatar a curva.
Augusto Baptista
INCISO
O senhor Aniceto atentou na frase publicitária impressa nos cartões de visita da sua velha empresa: "Consigo sempre".
Reflectindo no seu desempenho actual, e validada a opinião de dona Adosinda, a esposa, decidiu em abono da verdade iluminar a frase com um esclarecedor inciso: "com naturais intermitências".
Augusto Baptista
VIDA ANIMAL
– Viva, dona Rosa, a senhora está bem?
– Obrigada, vou indo.
– E lá por casa, os animais?
– Tudo normal. O meu homem, o mesmo camelo de sempre. Os meus filhos, a matilha selvagem que a senhora conhece.
– Não, dona Rosa, os animais, os gatos?
– Ah, os gatos! Esses estão bem. É o que me vale. Tão humanos...
Augusto Baptista
SE EU FOSSE
Se eu fosse mulher, queria que uma manhã o meu amor me ligasse, me dissesse: Gosto de ti. Assim, sem mais nada.
E eu mulher, eu iria dizer: Porquê isso agora, seu tolo. De que te foste lembrar...
E haveria de gravar essa declaração madrugadora para no entardecer da minha vida ouvir alguém dizer-me: Gosto de ti.
Augusto Baptista
Entretido a perscrutar os artigos expostos no balcão, de repente os olhos do freguês tropeçam na papeleta descritiva do produto. Após surpresa, a pergunta:
- Feijão anão! Anão porquê?
Com enfado, a patroa:
- Porque é rasteiro, senhor.
O freguês, cáustico:
- Está mal! Se alguém passar por um anão e lhe chamar rasteiro ele vai sentir-se ofendido.
Olhos em branco, a patroa:
- Qualquer um ficava. Mas um anão não é um feijão.
- Ah!
"No dia 28 de Março de 2021, entre a 1 e as 2 da manhã, cuida-te: vão cair-te mil pianos na cabeça!"
Estranho sobressalto, esquisita sentença a atormentar-lhe o sono. E que enredo: mil pianos! Mil pianos na cabeça, ele - que seja de seu conhecimento - sem contas a ajustar com o instrumento.
Cauteloso, leva a sério a ameaça.
Chegado o dia, chegada a hora, no exacto instante anunciado, passa ao ataque. Gesto hábil, adianta o relógio uma hora. Num ápice, duas da manhã!
E o mundo na mesma, ele incólume!
Ele a salvo, a vida a fluir na toada musical do costume, tic-tac, no 88º dia do ano, Dia Mundial do Piano.
Augusto Baptista