Enigma 125
Quantos mistérios, na nervura de uma folha?
Augusto Baptista
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O homem do garrafão
Cruzámo-nos
na Rua de Cedofeita, fim de tarde de domingo, Junho passado. Eu distraído, de
repente entrevejo, debaixo do braço, passando, um garrafão. Dentro, um carro de
bois. Logo filei o passante. Que estava com pressa; se quisesse entrevista, o
procurasse no dia seguinte, em casa. Anotada a morada, foi-se. Apressado.
Dei
por mim pasmado no passeio, tal qual o meu amigo Ivo Ferreira, homem do cinema,
que na ilha do Príncipe decidiu permanecer um ano para tentar perceber “isso de
um gajo ir ao fim da tarde para a rua arrastar o chinelo, com o seu chapéu,
passear uma carcaça, uma carcaça cortada ao meio, sem nada lá dentro”.
E,
no Porto, o que fará um homem ir para a rua passear um garrafão?
Chamo-me
Américo Santos, nasci na Ribeira em 1942, freguesia de S. Nicolau, Porto. Faço
70 anos no dia 11 de Agosto. Gostaria imenso de fazer uma exposição
internacional mas não para vender, podiam dar para a ajuda, para vender não.
Casei na rua da Vitória, vim morar para Cedofeita. Depois de Cedofeita arranjei
uma casinha, que é esta aqui, e vim para Lordelo do Ouro, onde estou há 35
anos.
Fui criado num colégio. Aquilo era um reformatório, Reformatório Central de S. Fiel, Louriçal do Campo, Beira Baixa, ao pé de Alcains. Fui para o reformatório porque a minha mãe, naquela altura a vender tremoços na rua, na Ribeira, eu sempre atrás dela, não tinha possibilidades de me sustentar. Depois estive emprestado num lavrador em Gaia, a puxar bois, andava com uma vara. Quando a minha mãe ficou viúva, não tinha sustento para me dar, foi à polícia, ali na rua Mousinho da Silveira, falou com o chefe, disse que eu fugia à escola, que não queria aprender, e eles disseram É muito fácil. Foram a casa, comecei a chorar muito, ela é que dizia, levaram-me.
No
Porto estive três ou quatro meses pelos menos. Ali ao pé de Cedofeita, havia
dois colégios, um dos rapazes, um das raparigas. Depois fui para Castelo Branco
dez anos, e lá é que aprendi a arte de carpintaria e marcenaria. E a escrever e
a ler. Enquanto lá estive nunca cá vinha. Também aprendi música, harmónica de
boca.
Sempre
fui da carpintaria da construção civil e marceneiro, móveis. Depois deixei os
meus trabalhos, fui obrigado a deixar os móveis. Reformei-me há alguns anos,
por invalidez do coração. Como tinha saudades da madeira, comecei a fazer
brinquedos de madeira, relógios, santuários.
Faço
estas brincadeiras há cerca de 10 anos. Comecei pelos santuários. Depois dos
santuários, pedi à Santa Rita, que está em Ermesinde, se me ajudava a fazer
outras coisas para me entreter. Ela falou para mim e, em espírito, disse-me, Meu filho, a minha falecida mãe chama-se
Rita e está no gavetão, está naquela gaveta aqui, suponhamos que isto são as
ossadas, suponhamos, a Santíssima Rita está ali, sagradamente, e ela disse-me, Américo, entretém-te a fazer umas coisinhas
muito bonitas e, se não quiseres, vai para o piano, vai tocar piano. Gosto
de tocar os Parabéns a Você.
Depois
do santuário feito é que eu comprei uma santinha, à medida do santuário, que é
para ficar bem, e no santuário fiz um gavetão para as ossadas da minha mãe,
quer dizer, a imitar as ossadas no cemitério, a imitar as ossadas que
representam a minha falecida mãe. Depois do santuário fiz aquele navio
americano, com destino a Inglaterra, tem a bandeira americana na ré e à frente
tem a bandeira inglesa: sai da América, vai com destino à Inglaterra. E fiz
aquele brasão, de madeira, o brasão de Portugal.
Meter
coisas num garrafão era um sonho. Eu via as caravelas dentro das garrafas e
admirava-me como se conseguia, que isto é uma coisa secreta. Pensava “se
meteram a caravela eu quero meter um carro de bois de madeira”. O carro de bois
é uma cisma de criança, desde que andei em Vila Nova de Gaia a puxar os bois.
E
fiz o garrafão com o carro de bois dentro. O garrafão era de vinho, arranjei,
já tem uns vinte anos. Mas comecei por uma garrafa. A garrafa, andava no ciclismo em 1987 em Lisboa,
pertencia à Petrogal, e depois desisti do ciclismo, começou a faltar-me a visibilidade,
nessa altura eu participava no ciclismo aos domingos, e então fui sozinho para
Lisboa. Na garrafa queria meter um escadote, não era uma escada, que a escada
eu vejo muito nas garrafas, escadote não: os degraus do escadote, relativamente
a subir, são todos diferentes, a parte de baixo é maior que a parte de cima. O
escadote é mais complicado. Mas eu trabalho melhor coisas difíceis. As coisas
mais fáceis para mim são difíceis e para mim dificílimo é a coisa mais generosa
que pode haver. São ideias. Desenhei o escadote, daqueles de alumínio, fiz em
madeira. Foi a minha primeira peça de garrafas. Depois da garrafa passei para o
garrafão.
O garrafão, por ser maior, pensava ser mais simples meter o carro de bois do que meter na garrafinha o escadote. Parti vinte garrafões para meter o estrado, só o estrado, porque a parte do garrafão é redonda e o estrado é direito, mas, com as pecinhas juntas umas às outras, o estrado tornava-se curva, corria-me mal o trabalho. E era obrigado a partir o garrafão, que as peças não saíam.
Portanto
tive de estudar como é que devia fazer, para receber um soalho, aquilo para mim
era um soalho, eu soalhei este quarto, estava tudo podre, soalhei está
direitinho, portanto tive de fazer uma base para respeitar, para o estrado
ficar direito. Depois do estrado estar direito, todo montado, é que tirei tudo
de lá de dentro de uma vez só. A madeira esticou e depois então é que fiz o
resto dos trabalhos: os foeiros, as rodas, os calços, o balde.
Os
vinte garrafões naquela altura comprei-os, lentamente, nos tascos. Comprava por
exemplo um, passado um mês comprava dois. Isto é uma recordação minha, porque
já tem muitos anos, tem muita validade. Este garrafão azul é o que tem o carro
de bois. Os que partiram eram brancos, o azul foi o último, o azul é que
respeitou o meu trabalho.
Fiz
o meu trabalho com relevo, com muita cultura, muita personalidade, obra de
arte, respeitei, estou muito contente. E agora, se eu fizer mais algum, já não
parto, seja branco seja preto, seja o que for. Já tenho mãos, sei como hei-de
fazer. Faltavam-me no princípio as ferramentas necessárias, as ferramentas
próprias. São de automóvel, fiz à mão. Isto é aço, é para manobrar as peças:
são picadas e lentamente vai-se meter, vai-se puxando e vão encaixar. Isto é
muito importante. Nada de cola.
O
carrinho de bois fi-lo cá fora, demorou-me um dia e poucas horas e, para o
meter lá dentro, foi uma semana. Para chegar à sabedoria de pôr lá o carro de
bois, é tudo à base de desenho, eu sou desenhador, faço desenhos e depois é que
faço o trabalho, andei a estudar como ia meter o carrinho lá dentro, com rodas,
pipas, tudo montado, andei a estudar cerca de cinco anos, cinco anos é uma
vida, ia para a cama a pensar no assunto e fazer desenhos. Os garrafões não
pensava nisso, ia à Ribeira comprar, a Gaia, encontrava no lixo, pendurados,
nessa altura não havia contentores de vidro.
Quando
o senhorio morreu estava a fazer os trabalhos e por invejosidade deitaram-me o
barraco abaixo pensando que iam fazer obras e, afinal de contas, ficou tudo
estragado, aqui é só mato. Agora se quiser fazer tem de ser em cima de uma
cadeira, de joelhos.
Se
eu tivesse um espaço para as pessoas verem o meu trabalho, não queria dinheiro,
o dinheiro ajuda, mas, para mim, o dinheiro é a arma mais perigosa do planeta,
por causa do maldito dinheiro há guerra no mundo inteiro. Tanto é verdade que
na televisão, aqui na Assembleia da República, só falam em milhões, não falam
no trabalho para desenvolver o país.
Aos domingos saio com o garrafão, mas não é sempre. Eu por acaso ontem saí por casualidade, saí ontem porque estava bem disposto, para mostrar aos estrangeiros. As pessoas tiram-me fotografias, querem-me dar dinheiro, não aceito, eu preciso de dinheiro, mas sou mais comovido, mais chocado pelos meus trabalhos. Vice-versa, tanto posso sair com o garrafão como posso sair com um touro, tenho ali a balança da justiça, feita por mim, os pezinhos da balança da justiça rigorosamente iguais aos do santuário. E fiz a bancada de trabalho em pequena. Olhe aquele relógio.
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terça-feira, 19 de junho de 2012
O
homem que escalou as nuvens
Trepou montanhas, trilhou cordilheiras, subiu montes, montou picos.
Pisou toda a Terra em cota alta. Vencido o repto derradeiro, olhou o céu. E
percebeu nas nuvens, corpos fugidios, vaporosos, uma mofa libertária rente ao
Sol, a sombra a enterrá-lo no chão da cumeada.
Traquejado no desempenho das alturas, deu-se ao estudo do novo desafio.
Agachado, para não desconfiarem, aprendeu nomes, anotou rotas, analisou hábitos
e costumes, desenhou volumes, traçou planos para assaltar as aéreas e indómitas
naturezas transumantes.
Chegada a hora, ascendeu a um cabeço apropriado. Manhãzinha, entre
fiapos nebulosos, surpreendeu – iluminados – lãzudos dorsos a levitarem distraídos no baixio. Farejou os ventos,
escolheu a presa, saltou-lhe ao manso corpanzil. Interminável, a ascensão foi
depois, em colo fofo, brincadeira de menino.
In “o homem que”, Augusto
Baptista
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