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quarta-feira, 25 de março de 2020

Enigma 2308
Quem inventou a máscara?
Augusto Baptista

terça-feira, 24 de março de 2020

Enigma 2307
Antes íamos andando, e agora?
Enigma 2306
Estes tempos lembram tempos?
Augusto Baptista
Enigma 2305
Que raio leva as televisões a mostrarem-no até à náusea?
Augusto Baptista
Enigma 2304
Na China, logo cá: o vírus tem asas?
Augusto Baptista
Enigma 2303
Porque é que o sete anda de traço ao pescoço?
Augusto Baptista

domingo, 22 de março de 2020

Enigma 2302
O vírus é uma espécie de Diabo ou uma variedade divina?
Augusto Baptista
Enigma 2301
Os sem-abrigo vão ter tecto na prisão?
Augusto Baptista
Enigma 2300
Nestes tempos é o cão que vem à rua passear o dono?
Augusto Baptista
Enigma 2299
E agora, e agora na cidade quem dá de comer aos pássaros?
Augusto Baptista

segunda-feira, 16 de março de 2020

Enigma 2298
Com tanto álcool as mãos não poderão embriagar?
Augusto Baptista
Enigma 2297
Há horas em que a realidade é um excesso de ficção?
Augusto Baptista

sexta-feira, 13 de março de 2020

Enigma 2296
Corona: pandemia ou pandemónio?
Augusto Baptista

quinta-feira, 12 de março de 2020

Enigma 2295
Quando o sol, anémico, se encolhe atrás das nuvens, como doente entre lençóis, não seria de lhe perguntar o que o apoquenta, em que lhe podemos valer?
Augusto Baptista

quarta-feira, 11 de março de 2020

Enigma 2294
Há um tempo A.C., outro D.C.: Antes de Covid, Depois de Covid?
Augusto Baptista

terça-feira, 10 de março de 2020

Enigma 2293
Uma minúscula criatura encosta o mundo à parede: hora de reflectir ou é tarde?
Augusto Baptista

segunda-feira, 9 de março de 2020

Enigma 2292
Há acentos que viram um Marques num Marquês?
Augusto Baptista

domingo, 8 de março de 2020

Enigma 2291
Os Países Baixos dão aí pelo ombro dos Países Altos?
Augusto Baptista

sábado, 7 de março de 2020

Enigma 2290
Encharcados pela chuva os tapetes voadores mantêm-se operacionais?
Augusto Baptista
Enigma 2289
Há quem prefira viajar deitado, nos tapetes voadores?
Augusto Baptista
Enigma 2288
Nos tapetes voadores onde segue a bagagem de porão?
Augusto Baptista
Enigma 2287
Nas viagens em tapete voador há quem use protectores para o frio nas orelhas?
Augusto Baptista
Enigma 2286
Só tapetes ou também voam carpetes, passadeiras, alcatifas?
Augusto Baptista

sexta-feira, 6 de março de 2020

Enigma 2285
Num tapete voador, apertados, cabem quantos?
Augusto Baptista

quinta-feira, 5 de março de 2020

Enigma 2284
Não é cruel ver montras em execução?
Augusto Baptista

quarta-feira, 4 de março de 2020

Enigma 2283
Perguntas se ela se sente cómoda, mas será que ela não se sente mesinha-de-cabeceira?
Augusto Baptista
Enigma 2282
A limpeza em curso que por aí se anuncia é de nível médio ou superior?
Augusto Baptista

terça-feira, 3 de março de 2020

Enigma 2281
As raízes profundas da obesidade estão à superfície da boca?
Augusto Baptista
Enigma 2280
Qual o grau de dependência do círculo vicioso?
Augusto Baptista

segunda-feira, 2 de março de 2020

Enigma 2279
Em vez de pintar à pistola não seria mais radical pintar à metralhadora?
Augusto Baptista

domingo, 1 de março de 2020



A árvore de pé descalço

Texto de Augusto Baptista

Tronco dobrado sob o molho da carqueja, Palmira de Sousa foi, durante quase meio século, a fantástica figuração de uma árvore de pé descalço a caminhar no Porto, fustigada pela mais inclemente exploração.
«A primeira vez que fui presa por pé descalço, muito chorei. Ia com o molho, não tive tempo de me calçar. Ele veio: “Está autuada!” “Ó senhor guarda, queira-me perdoar”». Não perdoou. Palmira de Sousa, carquejeira das Fontainhas, teve de desembolsar os vinte e cinco tostões da multa de pé descalço que a lei estipulava, brutal penalização para quem apurava esse exacto valor por um extenuante carreto de carqueja.
No jogo do gato e do rato, outras ocasiões houve mais afortunadas: «Levávamos o calçado na mão. Se aparecia o polícia, botava-se ao chão e, quando se chegava à beira dele, já íamos calçadas». Valiam outros expedientes: peúgas desirmanadas enfiadas nos pés, sapatilhas com dedos de fora, chinelos sem solaria, enfim, compromissos entre o meio descalças e o meio calçadas, para escapar à multa e não atrapalhar a andadura: «Descalças, fazia-se melhor o serviço».
Às tantas, os polícias também faziam vista grossa, condoídos ou para evitar trabalho, aborrecimento, burocracia. Mas, ciclicamente, erguiam-se marés persecutórias, limitantes da circulação das carquejeiras, sobretudo pela Baixa, para não incomodar os olhos, o comércio.
Pintura de Abel Salazar, vulto clandestino a esgueirar-se na bruma, a mirrar ao sol impiedoso do Verão, assombração desmedida a assustar a noite, a chapinhar sob o peso da chuva no molho, Palmira de Sousa carquejou os fornos, as fornalhas, os «lumes caseiros» do Porto, durante quase cinquenta anos.
Nasceu na freguesia da Sé em 1912, com sete meses: «Parecia um gatinho esfolado». Sobreviveu ao parto prematuro, às privações da infância, adormecida pela «chucha de farrapo, com um bocado de pão e açúcar por dentro», perto a boneca de trapos, «uma mona com olhos feitos a lápis». Na escola, aprendeu a fugir: «Não queria estar presa». E cedo começou a andar com a mãe na carqueja: «Aos 10 anos, já acartava molhinhos, para ajudar».
O pesadelo cresceu com a idade; lateral, o clamor indignado de alguns sectores da cidade, face a uma «questão que tanto nos deprime aos olhos dos estrangeiros». A Liga Portuguesa de Profilaxia Social, em “O Problema das Carquejeiras do Porto”, publicava no ano de 1951 os esforços da instituição, desde 1928, para limpar «esta nódoa cívica», «fábrica de tísicos», pela via de «outro emprego menos duro e menos aviltante».
Apesar dos diagnósticos, das propostas, das correntes de opinião, do número relativamente pequeno de gente ocupada na actividade (cerca de 100 pessoas, sobretudo mulheres, em 1938), as carquejeiras só nos anos 60 se apagaram na paisagem urbana, quando o vegetal enfim se apagou nas padarias, carvoarias, cerâmicas. «Passou tudo a maçarico, gás, electricidade; agora, até para acender um fogareiro, é com jornais», lembra.
Finda a carqueja, «a gente teve depois de se deitar ao que calhou, uma miséria: limpezas, acartar pão». Afinal, «a mesma cruz de antes», o tempo da carqueja e da chamiça a transbordar nos rabelos rio abaixo, desde a Lixa e Melres, até à “Praia dos Tesos”. Nos três cais, cada um com seu capataz, os tripulantes do barco «um à espadela e dois a remar, para apanhar a maré, atracavam, botavam a carga».
Em cena entravam as carquejeiras, a emolhar, a carregar para os armazéns, a levar a rama aos fregueses. E era a saga da ascensão vertical, eterna, da Calçada da Corticeira, ziguezague doído no lajedo de pedra larga, sob o fogo do molho, até às Fontainhas. Então, dealbava a cidade.
Na lufa-lufa penou Palmira, «enganada aos 27 anos», casada pela igreja já com um filho na barriga, boda de casamento à altura desses tempos: «Era Inverno, nem tinha que comer. Duas velhas deram-me 25 escudos e fui à Rua Escura comprar duas postas de bacalhau».
A gravidez cumpriu-a a trabalhar. Assim sete vezes, que sete filhos teve do Albertino, também ele carquejeiro, falecido aos 30 anos. «Filhos bebézes», não tendo com quem ficar, levava-os no avental, «uma mão a segurar as pontas, outra o molho». Exausta, parava, recatava-se às vezes, para lhes dar de mamar.
Sobreviveram três, duas raparigas, um rapaz. Os outros sumiram-se, como toda esta história vegetal feita de capatazes, rabelos, pão de lenha, carvoeiros, fome, tuberculose, polícias, companheiros de trabalho: o Arnaldo, o Ricardo, o Dulovim, o Cassiano, o Fura, a Laura, a irmã do Herculano, a mãe da Valentina…
«Só resto eu e uma cunhada minha, a Margarida. Eu com 90 anos, ela mais nova, terá 88». Apesar da idade, Palmira guarda na cabeça memória viva, inapagável, dos tempos idos: um sulco, transversal e fundo, um sulco que lhe marca a abóbada craniana, a calvária. Nesta extensa depressão óssea, dorme a tensão demencial da corda que segurava a frondosa copa sobre o seu frágil tronco, mulher-árvore de pé descalço a caminhar no Porto, a caminhar no Porto, a caminhar no Porto.
in revista Notícias Magazine n.º 549, de 1 de Dezembro de 2002, e in Gente do Porto, edição da AJHLP, Dez 2017, pág. 7.