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quarta-feira, 1 de junho de 2011

O homem que não sabia contar uma história

Doze passos. Vencido o corredor, entro no quarto, decidido. Sobre a cama, redemoinho convulso de lençóis, Alícia. Inexpressiva.

Dúzia e meia de palavras, breve trecho. Quanta informação silenciada, referências perdidas, quantos elos decisivos sonegados para desvendar a trama, ligar as pontas? E em alguns desses momentos, nas reflexões, nos estados de alma do narrador até, num irrelevante pormenor, sabe-se lá, poderá constar o liame estrutural. A chave. Arrisco,

Doze passos, exactamente doze passos, que os contei, um a um. Passos normais, nem largos nem curtos, andadura marcada pela juventude dos sapatos a macerar-me o joanete, circunstância que leva a ponderar cada momento, a contar cada aterragem do pé sobre a dor fina, detalhe só ao alcance de quem percebe de joanetes e de sapatos. Sobre a felpa desta dor concreta, digo-a entre a picada de um alfinete e a dor de dentes, no justo instante em que o dentista toca o fundo do ostíolo cariado com a ponta do estilete. Dói?! Da casta das dores finas é cotovelo em esquina, é dor de rins,

degrau absoluto da estirpe. Nos antípodas, está a

cabeçada em tecto baixo, para alguns o grau maior das categorias grossas. Mas a dor constitui-se pessoal, logo as gradações generalistas são saltos no escuro, exercício a que se atrevem os compêndios médicos. De mau gosto é a passadeira que agora piso, rumo ao quarto de Alícia, entrançado de sisal, descolorido e velho, a harmonizar com o castanho-soturno do soalho, rabujando sob os pés, os sapatos, a dor. O caos. A exclusão, apesar dos pormenores. Afinal, mais relevantes do que doze passos, passadeira desbotada, o joanete, é este frasco de éter que agasalho no bolso, esta mão-cheia de algodão em rama, este rolo largo de mordaça adesiva, esta tesoura fina, estes suores frios, os retratos.

A ornar a passadeira, abrem-se alas de gente perfilada, denso painel de fotografias, preto e branco, coloridas, Alícia de véu e grinalda, eu de fato escuro, conforme a tradição, embora outros sejam hoje os entenderes. Mas os caminhos do gosto têm um contra-percurso: quando em voga está o abandono da gravata, crescem os devotos do tramelo, do laço de antanho, adereço de que sou incondicional cultor e não dispenso, mesmo sabendo-o pormenor que me faz remoto.

Sinceramente, ninguém lhe dá essa idade, senhor Inocêncio.

Isso é para me dar alguma esperança, Dulcinha?

Ó senhor Inocêncio, se a dona Alícia sonha...

Tudo tem remédio.

Abrenúncio!

Depois disto, Dulcinha começou a passar por cá a horas convenientes. Tudo acertado: entra, discreta, eu espero-a, cinto desapertado, calça a desfalecer, camisa bamba. Terminada a função, ela esgueira--se e eu apresto-me a levar à cama o pequeno-almoço de Alícia. Abro as persianas e a luz entra, brutal. Para ela, inocente, o dia começa neste instante incendiado.

Começará?! Ultimamente pressinto-lhe chispa no olhar. Terá isto a ver com a súbita aquisição? Suspeitará?

Que tens? sondo, sonso.

Que haveria de ter?

Então para que compraste aquilo? – ataco.

Aquilo?

A bomba. A bomba que escondes!

A bomba?! Não me digas, andaste a coscuvilhar!

Chamas a isso coscuvilhar?

Além de velho, polícia. Poupa-me a telenovelas, Inocêncio!

Sabe como me ferir. Séculos de vida em comum revelaram-lhe o meu ponto fraco: polícia, chamarem--me polícia. A resposta sai apagada, inaudível quase, como mais dói:

Vê-te ao espelho, mulher.

A intriga afunda-se, jogo de facas em mãos senis. Narrar reclama elevação. Retomo,

No topo do corredor, a coroar a galeria fotográfica, os retratos das bodas de prata, das bodas de ouro. Numa hierarquia que só Alícia desvenda,

Vencida a porta, silenciosamente pesquiso. As pistas perdem-se. Dentro, evidência nula. Deitada, a olhar o relógio, Alícia.

Gostava de saber que raio andas tu a fazer no corredor, a manclitar para trás e para a frente há horas! estremeço. Não refeito da surpresa, nova investida.

A Dulcinha telefonou a dizer, a dizer que amanhã não pode vir cá dar-te a injecção. Virá depois, mas avisa.

Eu pasmado, a mão no bolso a segurar a tesoura de lâmina eficiente, o algodão, o éter, o adesivo, objectos a que nesta hora não diviso serventia, ela, agastada:

Anda, vem fazer-me o curativo!

Acordo! E enquanto me encaminho para a cama, atenção presa no dedo dela, inflamado, roxo, febril, Alícia olha-me, de repente desesperada. Olha--me, como quem se despede do mundo. Neste frenesi de afogada, mergulha o braço no travesseiro, sempre a olhar-me, sufocada, súbito emerge a mão aflita. É a bomba! Recuo. É a bomba que logo activa, arma química sobre a boca escancarada, que logo activa, justo a tempo de travar o ataque.

Faz sentido acolher a crítica: providencial, a

aquisição do apetrecho, decisão que antes verberei, longe de imaginar uma recidiva. Tal qual esta prosa asmática, submersa em hesitações, milhares de caracteres para amarrotar. De novo a história: eterno recomeço.

Doze passos, ao longo do corredor-serpentário. A jóia da coroa é uma jibóia de duzentos quilos,

há os filhos, os netos, os sobrinhos, os primos. A árvore genealógica dependurada na parede, memória densa, embalsamada, a esconder as chagas que corroem o reboco.

A cal, a poeira do estuque no sobrado denuncia a idade da casa, a decrepitude: herança antiga, era dos avós de Alícia, foi dos pais de Alícia, é de Alícia, que casámos com separação de bens e os herdeiros rumaram para longe, cada um para mais longe: Dulcília, Buenos Aires; Armindo, Angola; Raimundo, Damasco; Angélica, Rio de Janeiro. Enumeração fastidiosa, dispensável, que tudo consta no itinerário das molduras, ou das frestas, conforme a abordagem na parede Com muito amor, da filha querida Joana, Cairo, 1985; Com as saudades todas do mundo, vosso filho Artur, Singapura, 1978, mensagens a custo decifradas, por detrás da cortina de caliça que cobre as imagens, se espraia nas caixas de vidro junto ao rodapé, manto de geada. Vendo bem, há, na mortalha de cal que recobre o soalho, impressões serpenteadas, vestígios irregulares, talvez pegadas, caprichosos desenhos revelados pelo caótico derrame. Revelados pelo pó, pelo tempo. Pelo desnorte desta escrita sem fio condutor, sem caminho, que se emaranha, bloqueia. Aborrece. Talvez, Doze passos, atravesso o velho corredor, detecto serpenteados, intrigantes pegadas. Mesmo num

exame distraído, em nada coincidem com a moldura dos meus sapatos, no tamanho, no traçado da solaria, a anunciarem intrusão no quarto. Mão calada no bolso, fecho a tenaz dos dedos nos olhos da tesoura.

referência fundamental pois o ofídio, ferocidade intacta, consome por semana o seu peso em carne. Uma saída da gaiola de Gargantacristalina, adeus Alícia! E sobraria drama para Mic, o macaco brin-calhão que anima a cozinha, e para muita da animalada exótica que deambula no quintal, mergulha no lago do jardim. Até eu, tratador canhestro do zoo doméstico, teria de me pôr ao fresco.

Gargantacristalina foi presente de Angélica, filha mais velha no Brasil, quando fizemos 50 anos de casados. A transmissão do testemunho está registada numa das fotografias que povoam a parede do corredor, a clamar restauro. A caliça, a tombar do tecto, das paredes, faz do chão uma página em branco, diário rasteiro do lar: calcorreio de insectos, pegadas, impressões serpenteadas de lomba larga! Meu Deus, impressões serpenteadas de lomba larga, escrituras de traço grosso, a irromperem! Doze passos. Vencido o corredor, entro no quarto, decidido. Sobre a cama, redemoinho convulso de lençóis, Alícia. Inexpressiva.

Em redor, silêncio, quietude de pedra. A luz do candeeiro da mesinha de cabeceira adoça as feições de Alícia, olhos fechados, habitada pela volúpia, o mesmo íntimo e secreto deleite que lhe conheci na juventude quando íamos jantar fora, ela, gulosa, após o repasto a dormir no banco de trás, torpor digestivo, este mesmo sorriso a esvair-se na comissura dos lábios.

É a história a perder-se outra vez, agora em memórias, na observação deste rosto, na textura da pele, na raiz do cabelo, nariz, no desenho do queixo, na fundura da boca. Desta boca que num viscoso fascínio se abre, excessiva me ata, afoga.

In o homem que, pág. 69, Augusto Baptista

terça-feira, 31 de maio de 2011

Novas parábolas

Era uma vez uma floresta de muitas árvores, cruzando ramagens, raízes, canto de pássaros. Houve um tempo de fogo. E a floresta se fez deserto de troncos mirrados, em pé. Logo um tempo de ventos, um tronco caiu. Caindo, tombou outro tronco, este tombou mais um outro, estoutro arrastou muitos mais.
Era uma vez um canto de pássaros.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 32, Augusto Baptista

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Quebra-cabeças

O enigma de uma pulga no colarinho de Sua Excelência.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 41, Augusto Baptista

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Cavalo-com-arções

Especialidade hípica em que a besta se apresenta imobilizada, sob o cavaleiro aos pinotes.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 12, Augusto Baptista

terça-feira, 24 de maio de 2011

Vírgula

Sinal gráfico a indicar pausas. As pausas do bobi, ao longo do trajecto.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 50, Augusto Baptista

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Quase

Pedrada que por um triz falha o alvo a depenicar o ervilhal. Exprime-se em metros.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 40, Augusto Baptista

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Xantóptero

Sujeito de asa amarela, seja tacho, xícara ou panela, tucano, colibri ou libelinha, cavalo alado, arcanjo ou foguetão.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 51, Augusto Baptista

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Enguia

Criatura que quanto mais se aperta menos se agarra.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág 16, Augusto Baptista

quarta-feira, 18 de maio de 2011

WC

Houve um tempo na cidade em que o 52 parava na Praça junto a umas árvores, galhos negros a regurgitarem à noitinha de frutos chilreantes: o alarido da pardalada antes de adormecer. A céu aberto, nos ramos sobranceiros, o WC.
Na paragem do autocarro, pandemónio. Entre os alvejados, o alívio dos pterossáurios estarem consabidamente extintos.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág 50, Augusto Baptista

terça-feira, 17 de maio de 2011

O homem que cortava a direito

Os amigos recordam-no, saudosos, como um homem recto, cidadão que, face a contrariedades, não perdoava: se os calos o magoavam, vik!; se lhe doíam os dentes, vuk! A última vez que foi visto queixara-se de uma leve dor de cabeça.
In o homem que, pág. 29, Augusto Baptista

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Brisas domésticas

Está-se a levantar um vento... Isto dito, já ela vogava no ar, sem que alguém lhe pudesse valer, algo houvesse para se agarrar. Longe, pensou: Se ao menos o vento amainasse. E logo caiu: sobre a cama, por sorte.
O homem, concentrado nas palavras cruzadas, limitou-se a reflectir: Não pode beber tanto ao jantar. E foi indo fechar a janela.
Augusto Baptista, Maio 2011

sexta-feira, 13 de maio de 2011

A viagem

Perseguiam destino ondulante: ele enredado na rota do Vale Sombrio; ela obstinada no trilho do Cabeço Iluminado. Deram o nome de André à experiência peregrina.

Augusto Baptista, Maio 2011

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O homem que era um pai babado

Os miúdos aprendem a escrever cada vez mais cedo, facto positivo, mas que não deve ser tomado como valor absoluto, a ponto dos encarregados de educação baixarem o nível de exigência linguística, tolerarem grosseiros atropelos ortográficos. Ainda há pouco, o Aniceto, já quase com um ano de idade, assinava o nome com dois ss, ante o gáudio do paizinho!
In "o homem que", pág. 63, Augusto Baptista

terça-feira, 1 de março de 2011

Ordenamento

Vencidas as imperativas etapas, consumaram-se. E tantas eram que formavam um denso manto de asas trémulas a agasalhar a dona, da cabeça aos pés.
Quando saíam, a cidade sobressaltava-se. À passagem da multidão, nas tardes quentes, sobretudo, entre alas de plátanos e canto de pássaros, o trânsito encrespava-se, cresciam buzinas, impropérios, e os peões estougavam o passo, nauseados.
Um dia, mobilizaram-se as forças da ordem. Com bulldozers, fumigadores, moto-serras, machados. E a urbe pôs fim à conspiração volátil.
No desafogo da praça expurgada, bem no centro de betão, há agora uma mulher de mármore nu, mãos ambas a cobrir o crâneo escalavrado. À volta, nem uma borboleta.

In O Caçador de Luas, pág. 74, Augusto Baptista

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

O boca de ouro

A mulher esmera-se em gemadas e sumos de limão, ele numa azáfama de gargarejos de água e sal, toda a semana. Dois dias antes, grau absoluto de mudez, entra em estágio. Chegado ao campo, abre a boca - no início do jogo - fecha-a, logo no fim. Dentro do estojo, volta a guardar a áurea dentadura, desnecessário apetrecho para sorver agora gemadas e sumos de limão, toda a semana: novo ciclo de abstinência fónica para manter em forma o locutor de futebol.
In O caçador de luas, pág 37, Augusto Baptista

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Quem come quem

Foi à mercearia procurar fermento, do bom. A atestar o acerto da compra, a massa inchou na forma, cresceu no forno, excedeu no fogão, galgou cozinha, moradia, aldeia, engoliu o adro pleno de gente aflita, a torre sineira, o vale, o cocuruto do monte. A salvo da destemperada gula, só um irrequieto bando de pardais, entretido a depenicar o bolo.
In O caçador de luas, pág. 54, Augusto Baptista

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Humor ao alto CXXXV

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Humor ao alto CXXXIV

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Humor ao alto CXXXIII

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Humor ao alto CXXXII

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O castigo

dezintereçad...!? Tanta asneira, Joãozinho! De castigo a menina vai para casa escrever: desinteressadamente! d-e-s-i-n-t-e-r-e-s-s-a-d-a-m-e-n-t-e! Quarenta vezes! Q-u-a-r-e-n-t-a-v-e-z-e-s! Q-U-A-R-E-N-T-A!

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Exausta, adormece. A mamã guarda a esferográfica, fecha o caderno dos deveres, leva a Joãozinho ao colo, para a cama. Pela manhã, a menina acorda, toma o pequeno-almoço. E vai para a escola.

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Humor ao alto CXXXI

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Humor ao alto CXXX

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXIX

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXVIII

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXVII

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXVI

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXV

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXIV

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXIII

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Humor ao alto CXXII