Finalmente o patrão mandou-o entrar. Chapéu escuro entre mãos claras, Herodes, o escriturário, postou-se em frente da secretária.
— Então que há?
— Peço imensa desculpa, senhor Tavares... Tomei a liberdade de vir lembrar que estamos no Natal (silêncio). E era para o senhor, nesta quadra tão (roda o chapéu entre dedos), fazer o favor de não se esquecer...
Olhou para o velho, condoeu-se. Lembrou-lhe alguém familiar. Mas recuperou o sangue-frio.
— Todos os anos a mesma lengalenga. Ó homem, olhe bem para mim. Acha-me com cara de menino Jesus?! Olhe bem!
Olhou. A cara redonda, as bochechas alvas, quase transparentes... A manjedoura... Fazia sentido: o senhor Tavares era o menino Jesus! E ele? Que fazia ele diante do menino? Que mantos reais lhe cobriam o corpo mirrado? Para quê a cimitarra erguida entre mãos, o gume, fulminante, a projectar-se para baixo?
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 98, Augusto Baptista