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segunda-feira, 26 de julho de 2010

Humor ao alto L

O Homem que não apagou o fogo

Se quisesse poderia pôr termo ao holocausto, com um sopro, um pé, um simples copo de água.
Nada aprenderiam.
Deixou que tudo ardesse, na esperança que das cinzas brotassem prados de erva nova, bichos a pastar, um homem, uma mulher, um fruto.
E repetir a tentação.
In o homem que, pág. 40, Augusto Baptista

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Humor ao alto XLIX

hesitação

que tons de negro
para pintar o mar?

In hesitação, Augusto Baptista

domingo, 18 de julho de 2010

Humor ao alto XLVIII

Pintarroxo

Pincel no pigmento, picuinhas, o pintor pinta o pitoresco pinheiral: o pirómano aos pinotes a pirar-se ao pingalim, piedade!, as pirraças dos pimpolhos em pijama no piquenique, os piropos piegas do pisa-mansinho à pitosga pitonisa, o pica-peixe na pilhagem piscícola, o pica-pau a picar o pinheiro (pintassilgo na pista do pinhão), a pirueta do pisco, o pianíssimo pio pio do pintarroxo, o pi
Fulminante uma bola! Uma bola na tela e na pia harmonia! Para gáudio da mulher do pintor, desesperada com mais um fim-de-semana no campo a olhar passarinhos. De calção paquidermes a jogar futebol.
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág 38, Augusto Baptista
Humor ao alto XLVII

Surucucu

Sorvia um sumo açucarado quando sucedeu um sussurro associado a um sopro assolapado. Assustado com o assunto que lhe desassossegou a sorna, o idoso senhor Sousa surpreendeu no soalho uma sombra sulfúrea a submergir sorrateira no sopé do sofá. Decerto sonhara. E sorriu assombrado com a suposição de assurgir assim uma serpente a sério, sinusa, suave, a sobressaltar-lhe subitamente a solidão
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág 44, Augusto Baptista

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Humor ao alto XLVI

História de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias

Cara de mau, a envernizar a perna:
— Vê lá onde pões as patas! Isto está tudo cheio de vidros!
Pá e vassoura na mão, o ordenança:
— Deixe lá, senhor. Em terra compra-se outro.

In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág 62, Campo das Letras, Augusto Baptista

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Humor ao alto XLV

Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias

Rasga os tt em abraços nas costas dos ii: as pintas, como gotas em repucho, a resssurtir. Para baixo, perfeccionista, encaracola as pernas dos gg. Para cima, meticuloso, estica a cabeça dos ll. Engravida os OO. E os vv, boca para o ar, abre-os em súplica de passarinho.
Letra a letra, tece as palavras com esmero de iluminista. E a prosa flui muito devagar, paciência de mulher de Atenas a cerzir o tempo.
Anos na escrita a fio, tem já dois gavetões plenos de obra, preservada com bolinhas de naftalina: quatro colchas de casal, texto lavrado em ponto pé de flor, com orlas bordadas a bb entre pompons de pp.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 30, Augusto Baptista

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Humor ao alto XLIV



O homem que congelou

Vestia-se de escuro, conjugações que articulavam preto-brilho e preto-baço, a estabelecer uma harmonia negra que revelava inesperado vivo escarlate, a cor dos lábios. As sobrancelhas tinham presença, sob uma franja de corte rectilíneo, desenhada na fronte de curva adocicada. Esguio, o rosto, a pele clara, e os olhos não sobressaíam nem se apagavam, eram presença que se olhava de passagem, e se retinha: uma sombra iluminada.

E havia o busto, desenho calmo, natural, a aflorar discreto. Sob o vestido, nudez macia, adivinhada. Nos pés suaves, sapato de leve inclinação embalava o conjunto num enleio.

Demorada lentidão, ela passando, num impulso imperativo ele pensa interceptá-la, perguntar-lhe baixinho as horas. Mas, tudo tão rápido, mal teve tempo de a ver passar.

In o homem que, pág. 19, Augusto Baptista

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Humor ao alto XLIII

O homem que murchou

Os verdes anos passou-os na cidade fechado em gabinetes, estufas alcatifadas, submetido a regras, horas certas, gravata. Tudo lúcido, exacto. Sem Sol. Depois a reforma, o campo, os pássaros, árvores, a contemplação por detrás da cortina para não recozer a pele, as mãos sobre a bengala, o tempo a sobejar.

Às vezes a família vinha visitá-lo, olhos de relógio. Conversa, a de sempre, quase só silêncios. Na hora da despedida, uma vez não se conteve, falou. Falou e disse, a olhar os campos mirrados no bafo da tarde, hoje estou triste, disse, numa poética campesina que ninguém ali alcançou, sequer procurou compreender, disse, fixo nos frutos engelhados, tontos, hoje estou triste como um tomate.

in o homem que, pág. 39 Augusto Baptista

Humor ao alto XLII

O homem que perdeu o Pai Natal

Ainda no berço, conheci-o. Lembrança difusa, odor a canela. Depois, miúdo, recordo-o num hálito quente e nítido de bacalhau e batatas, pés de tronchuda, a boca da panela, sempre a maior, baforadas densas a enevoarem a cozinha. Iluminada pela toalha de linho da avó, a mesa farta: bilharacos, rabanadas, uvas passas. E nozes, pinhões, apesar do preço.

O tempo da família grande.

Todos apareciam. E ele não faltava. Chegava tarde, ceia alta, por volta da hora explosiva do espumante, rolhas no tecto em ricochetes cegos. No auge do alvoroço, pam! Todo o mundo, pam!, transido, se calava. As pancadas, pam!, as três pancadas com a acha na grelha do fogão a lenha. O sinal.

Recuperada a respiração, algazarra, saltávamos aos brinquedos. No frenesim do que era meu, teu, por ali andaria ainda ele na cozinha, embora com rigor e em verdade nunca nos tenhamos cruzado, o tenha visto.

Anos mais tarde, a mudança para a cidade, um sem-regresso ao aconchego da velha casa. E a revelação cruel de todo o embuste.

Longo luto.

Um dia, homem feito, às compras num centro comercial, de repente, em carne e osso, à minha frente: o patriarca da infância. As mesmas barbas brancas!

Não mais larguei o meu herói. Deslumbrada sombra, segui-o para todo o lado, horas a fio. Até que às tantas ele se aproximou e, baixinho, barbas coladas ao ouvido, me disse para o esperar mais adiante, ao dobrar da esquina. Que ia só ali, e vinha já.

in o homem que, pág. 8, Augusto Baptista

Humor ao alto XLI