In O caçador de luas, pág. 125, Augusto Baptista
terça-feira, 30 de novembro de 2010
Destinos paralelos
Ao primeiro olhar, encandearam-se. No desvario, ele corre para o banco do jardim, fica a aguardar; cativa do mesmo impulso, sentada no banco ao lado, ela, também à espera.
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segunda-feira, 29 de novembro de 2010
Pilifobia
Nasceu-lhe um no braço e logo desatinou: tinha asco a pêlo! Repugnavam-lhe barbas, bigodes, tranças, cabeleiras, penugens, toda a ocorrência piliforme, em suma. Com um hábil e demorado acompanhamento familiar foi possível relativizar o incidente, vencer o trauma. E ganhou estofo para depreciar os cabelos que lhe haveriam de nascer na palma da mão, as madeixas peludas a crescerem-lhe na planta dos pés, os fartos entrançados a soltarem-se do palato, a poupa ondulada a emergir-lhe da língua, os densos caracóis a saírem-lhe dos olhos... A cada achaque, sábia, a mãe aquietava: Há gente, filha, há gente a quem pêlo nasce até no coração...
In O caçador de luas, pág.117, Augusto Baptista
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sexta-feira, 26 de novembro de 2010
Cara mirada
Todos os dias, estremunhado e grave, José cumpre o dispendioso ritual de se mirar ao espelho. E logo se parte a rir: de José, o espelho.
In O caçador de luas, pág. 49, Augusto Baptista
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quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Sonhava escrever com a leveza do voo de um pássaro, assinar ofícios com o fulgor de uma estrela cadente, luz apenas.
Naquela tarde, gozo de menino a rabiscar paredes, resolveu adestrar a mão. Ritmos poéticos, a Parker corria leve no papel. Autónoma, precisa. Refulgências de ouro por baixo de "O Administrador-Geral". Ele absorto, perdido, cabeça longe.
Fez trezentas assinaturas assim. Trezentos ensaios perfeitos. Trezentos depedimentos de sonho.
In Histórias de Coisa Nenhuma e outras pequenas significâncias, pág 95, Campo das Letras, Augusto Baptista
terça-feira, 23 de novembro de 2010
O homem que lê o céu
Abre o guarda-chuva, põe a mão no ombro dela. E caminham sob um céu nocturno, tecto de galáxias e muitas formações estelares. Soletram Piscis Austrinus. Riem de Canis Minor. Comentam Monoceros. Percorrem Serpens Cauda, Andromeda, Cassiopeia, Ursa Minor. Enlaçados em Delphinus, rente a Orion se beijam. Lá fora o dia espreita.
In O homem que, pág. 24, Augusto Baptista
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Quando
Quando muda de sentido, conforme os animais. Por exemplo: Quando um bebé abre a boca é diferente de Quando uma onça abre a boca ou de Quando uma cobra-cuspideira abre a boca ainda de Quando um tubarão... Quando um director-geral...
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág. 39, Augusto Baptista
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sexta-feira, 19 de novembro de 2010
O adeus
Nos clássicos movimentos de um cumprimento, a mão do doutor Proença desprendeu-se. Acidente: que, no aperto de dona Josefa, não houve ardor.
Ao sentir coisa grudada aos dedos, num gesto de automática defesa a senhora sacudiu. Projectada, a mão do doutor Proença caiu, enérgico desamparo, no empedrado.
Ganhando brusca consciência do caso, sem cuidar da mão, dona Josefa desfez-se em desculpas e perdões. Alheio, olhar na ausência, no coto, o doutor Proença aquietou:
— Deixe, minha senhora. Que havemos de fazer? É a vida.
De repente, desperta pelo magnânimo desprendimento, acirrada pela culpa (que não teve), dona Josefa apressa-se, calçada abaixo. Quando, ofegante, chega à margem, já a mão do doutor Proença, a vogar no rio, é um aceno.
In O caçador de luas, pág. 60, Augusto Baptista
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Entra e logo o dono do estabelecimento:
— Muito bom dia dona Mariazinha. Então que manda?
— O costume, senhor Silva.
Foi à estante, colheu uma braçada dos de lombada grossa, pesou.
— Três setecentos e cinquenta. E que mais?
— Olhe, já agora, levo um par de badanas. E uma dúzia de frontispícios, para o gato.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 35, Augusto Baptista, Campo da Letras
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segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Em noites de tempestade, gosto de abrir a janela, sair. Quem me surpreender depois a vadiar num céu de relâmpagos talvez julgue ver um anjo migrante, tresmalhado do bando. Enquanto, a saltar entre lianas de luz, eu, simplesmente Tarzan.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 67, Augusto Baptista, Campo das Letras
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