Nasceu e cresceu assim. E assim se habituou a viver, autónomo, constante precisão de gestos e alerta de sentidos. Aprendeu a ler os sons, os cheiros. E a ver por eles e pelo tacto da bengala. Um código de sinais difícil de explicar.
Pela manhã, como sempre, saiu de casa. Na rua, a cidade a ferver num desassossego de carros, autocarros e gente, desencontro de caminhos e destinos. E ele a bengalar o chão, passo travado, atento, no passeio. De súbito, choque brutal, um clarão! Relâmpago de luz plena. Punhal de fogo no fundo dos olhos.
Projectado sobre o asfalto, enovelado em raios de claridade, caiu, olhos vidrados. Via! Agora via! Nítidas as formas, as tintas da sua cidade tacteada. Brancas de cal, caras sobre ele. Olhos de espanto azul, castanho, negro. Coloridos, tão lindos, os olhos. Mãos debruçadas num socorro. Dedos nervosos, tisnados de tons impacientes. Chamem o 112! Bocas abertas em gritos de lábios róseos, cor inesperada: Mataram o ceguinho! Os cabrões do carro mataram o ceguinho e puseram-se nas putas!
Ele, como tombou, ficou. Olhos pasmados para o céu. À sua volta, bando nervoso, as jovens do colégio ali de frente. E ele a topar, passarinhantes, exaltadas, pernas de seda. A mirar quietinho pérolas de luz em excitação de fogo. A micar, por baixo das saias desacauteladas, coxas tenras. Carne pele de veludo a levitar em arco-íris de langerie tranparente. Clara, branca, langerie transparente. Sempre mais clara, mais luz, mais transparente. Luz absoluta. Luz original.
In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista
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