O velho cidadão tinha um pensamento bíblico, de certo modo: tendia para as parábolas. Inquirido sobre o tempo alegorizava. Perguntado sobre o lugar divagou: Os gafanhotos chegaram em bando compacto e logo se juntaram aos outros no desfrute. Desde aí a aldeia se fez vila e assim sucessivamente. Sob o lema ‘Tudo pela ocupação, nada contra a concórdia’, as ruas foram baptizadas com nomes velhos e o semáforo posto a funcionar na medida do possível. Os buracos passaram a ser tapados ao ritmo conveniente, que todo o esforço oficial se concentrou nas variantes. E na poda das árvores, pelo tronco. A contemplação foi declarada uma desnecessidade, idem os livros, as salas de espectáculo, as magnólias proibidas de sujar o chão com pétalas, nas manhãs de Março. E, durante todo o ano, a ninguém foi consentido olhar as estátuas, de frente. Também de trás. As nuas. Que nada consta quanto às outras. Aos habitantes de todas as idades e condições foi autorizado um giro, sem abusos viciosos, numa das muitas montadas disponíveis: cavalos, elefantes e congéneres. Já expressamente vedada está, às senhoras, deambulação com sapato de salto alto pela zona empedrada, para não ferir o pavimento e as juntas pedregosas. Por fim, o insigne cidadão sobre o pedestal, no largo, foi lateralizado. Para não estorvar.
Antes que o sujeito de passagem, que tudo ouvira em silêncio, algo dissesse, o velho cidadão concluiu: Pergunta-me meu caro, bem vejo, porquê não apelar a um bando de pardais que, de uma vez, extermine a praga, os gafanhotos? E depois da engorda, me diga, quem comeria os pássaros?
In Histórias de passagem, Augusto Baptista, http://reporter.canalblog.com/
Parabéns Augusto, pelo retrato - tão nítido - da nossa aldeia. E como nos incomoda este estado de coisas. Será que os gafanhotos entendem a parábola?
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