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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias

Os dias passava-os à mesa. As noites também. Para ele, viver era comer. Naturalmente, inchou de engorduramento. A barriga cresceu-lhe, engoliu o peito, o pescoço, a cara. Os braços ficaram reduzidos a duas mãos sapudas. Para baixo, só barriga e pés.
A bem dizer, era enxúndias com boca. Um dia, exagerou. Entretido nas papas de sarrabulho, no cozido, sôfrego na feijoada com orelheira, rebentou. Compressão excessiva de gases com entupimento da válvula de segurança, segundo o relatório técnico dos bombeiros.
A deflagração ouviu-se longe. E de longe veio gente ver a cratera, os estragos: vidros partidos, telhados pelos ares, paredes sujas de papas, feijão, orelheira. Mas o pior ainda era o cheiro gordurento daquela devassa intestinal. Uma esterqueira. Um nojo. Uma vergonha, mesmo no centro escorregadio da vila.
Os familiares assumiram as culpas. Hipotecaram-se na limpeza, até ao último feijão. Gastaram fortunas. Desinfecções, garrafões de perfume francês, água de rosas. E, sempre, reincidente, um fedor em crescendo. Pivete assanhado de papas azedadas, que a mais leve réstia de sol desentranhava das pedras, inclemente. A alma do falecido? Logo, mais limpezas. Mais despesas.
Em consequência, houve que cortar à boca. Radicalmente. Semanas depois, os filhos, mirrados, finaram. Pele e osso, tísicos, mulher, netos, primos, tios, despediram-se. Todos. Mas não passaram pela vergonha de na vila se dizer que os do gordo eram porcos.
In Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias, pág. 70/71, Campo das Letras, Augusto Baptista

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