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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A velha que escrevia cartas de amor

Chegou encolhido, mão a segurar a mão, olhos baixos. Velha Serafina abriu a porta, cautelosa:
— Que mandas?!
Levou a mão ao bolso, insinuou a carta.
— Entra.
Sem delongas, à luz intimista da candeia, a velha leu a missiva devagar, entoação melosa a meia-voz. E Mariano ouvia. Afogueado na cara, nos olhos, nos olhos presos às mãos entrelaçadas, ouvia. Ouvia, em sobressalto.
Finda a leitura, breve diagnóstico ao rosto do rapaz, Serafina compulsou modelo competente em As trinta mil e três mais apaixonadas cartas de amor, grosso almanaque. Dextra, breve achou resposta adequada. Caligrafia cuidadosa, palavra a palavra soletrada, transcreveu:

Minha Senhora,
Quando li a sua declaração, confesso que fiquei aturdido. Vivendo Vossa Senhoria na cidade, onde não lhe faltarão pretendentes, como explicar o seu interesse por um moço da aldeia? Diz serem sérias as suas intenções. Sem disso querer duvidar, sinceramente, temo haver atrevimento excessivo no que me propõe, ousadia só possível numa mente tresloucada pelos doces eflúvios do amor.
Apesar de adivinhar na sua missiva boas intenções, não me atrevo a conceder-lhe encontro no domingo. O ardor da paixão aconselha recato, neste meio tão pequeno, ademais envolvendo uma senhora citadina e, acrescidamente, viúva. Imprudente seria pois, como sugere, vir esperar-me à saída da missa para o seu rosto apaixonado aí romper o anonimato.
O mais que se pode fazer, para não atearmos as vozes do mundo, soltarmos veneno alcoviteiro, é eu esperá-la na sexta-feira à noite, na casa da eira, ao pé do moinho, depois, claro, de toda a gente se haver acostado. Poderá então Vossa Senhoria tirar a máscara e desvendar, sem sobressalto ou pressa, tudo o que tem para me dizer.
Com sumo respeito, fico a aguardá-la.
Este que se assina,
Mariano

A explodir no calor da lareira, Mariano tudo escutou, sem um reparo. Velha Serafina fechou o envelope, escreveu o endereço da desconhecida amante.
— Tira-te de cuidados, amanhã compro selo e mando.
— Nem sei como agradecer, senhora Serafina.
— Não faltará ocasião.
Dissolvido na noite, Mariano sai. Serafina, rigorosa, guarda a carta no fundo da gaveta. Pelo anel passa uma ponta de lã, dá discreto nó: uma lembrança. Mera precaução para não se esquecer de sexta à noite, do compromisso.
In O caçador de luas, pág. 132, Augusto Baptista

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