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segunda-feira, 26 de abril de 2010

Volto já


As cidades são também povoadas de pequenos nadas: avisos, recados, informações, breves escritos afixados em montras, portais, paredes. Um mundo de palavras triviais, discurso de ninharias, que, na irrelevância da sua letra por vezes miudinha, muito diz deste tempo e de nós.


De repente, vejo-me na infância, a galinha choca no açafate, os ovos, excessivos, a extravasarem por debaixo das penas. Passados dias, nascem. Breve, andarilham em desenvolta fila indiana atrás da mãe adoptiva. E esparrinham-se nas poças de água, nadam. Num ápice, crescem: um pandemónio! Couves, alfaces, pés de milho, vorazes, estorcegam tudo. Durou anos o alvoroço de grasnados: feliz sobressalto.
Volto à folha de papel, afixada na pequena loja no Mercado do Bolhão: "Há ovos de gansa galados". Sob as letras, desenho em computador, a simpática bicharada que conheci na infância. É o campo a insinuar-se na cidade, em tempo de hardware. A motivar evocações.
Percorrer os espaços habitados é viajar pelo mundo das palavras. Desde as fachadas, muros, janelas, montras, enfim, de todo o lado, nos espreitam. São letreiros, painéis, avisos, anúncios. O verbo domina os lugares, maiúsculas altaneiras ou modestas mensagens em papeletas e cartões, ao rés da terra.
Quem passear o olhar, enreda-se em mudos diálogos com textos manuscritos ou impressos, curtos quase sempre, estranhos ou dúbios às vezes: "Liquidação de pares isolados", "Jogos cama — casal 18.70 euros", "Há bicha coreana", "Fazem-se bolos com fotografia".
Com atenção, descobrem-se notícias dramáticas: "Avisamos os nossos estimados clientes que este estabelecimento se encontra encerrado, por motivo de doença do proprietário"; chamadas de atenção inesperadas: "Para leitura do contador da água, é favor dirigir-se ao Restaurante Festival falar com o senhor Serafim". Informações imperativas: "Qualquer peça de vestuário que fique neste estabelecimento para além de 2 meses (60 dias) é considerada propriedade do mesmo, para fazer face às despesas existentes com a referida peça"; sedutores desafios: "Presunto de Chaves"; enigmáticas propostas: "Aqui encontra resposta imediata aos seus desejos".
Hoje dominantes são as preocupações de segurança, com a explosão de sinais: "Este estabelecimento encontra-se sobre vigilância electrónica. Entre sorria pois está a ser filmado", "Os cofres deste balcão estão equipados com sistema de abertura retardada", "Área protegida com sistema de protecção de intrusão". Frequentes são as recomendações afixadas à entrada dos prédios, redacção muitas vezes elaborada com evidência gráfica, desde o lacónico "Feche a porta p. f.", até ao prolixo "Atenção, para o interesse de todos, fechar a porta sempre que saia ou entre no prédio — agradece-se ainda que feche a porta à chave após as 22 h".
A onda securitária chegou às igrejas. Na Capela das Almas, na rua de Santa Catarina, no Porto, expressamente se esclarece, logo no átrio: "Pelas igrejas também andam ladrões. Não perca de vista a sua carteira, o guarda-chuva e outros objectos pessoais. Vigie o que é seu".
Ler as cidades inclui perscrutar o chão, ver onde pôr o pé, decifrar densas escrituras nos pavimentos, coexistindo de quando em quando com desdenhadas recomendações: "Não deixe na via pública ou nos jardins os dejectos do seu cão. Utilize os sacos-cão que estão ao seu dispor, gratuitamente. O não cumprimento deste dever é punível com uma coima de 5.000$00 a 25.000$00".
Omnipresentes são as propostas de negócio "Vende-se", "Passa-se", "Arrenda-se", "Liquidação Total": mensagens que frequentemente amortalham dramas, problemas. E há o apelo ao consumo, os mágicos: "Saldos", "Rebaixas", "Promoções", "Tudo ao desbarato", "Preços loucos"; há propostas apetitosas: "Temos pão de Favaios, Foz Côa, Mirandela", "Há broa com chouriço", "Tripas à moda do Porto". Para olhares sequiosos: "Sumo de laranja", "Sangria a copo", "Vinho tinto em garrafão — só 3,00 euros".
Não faltam inquietações: "Está satisfeito com o que ganha?", "Quer perder peso?", "IRS, entrega de declarações", "Mede-se a tensão arterial", "Funerária, serviço permanente". Em contrapartida, abrem-se oportunidades: "Admite-se pizzeiros/as", "Precisa-se empregada das 4 da tarde às 10. Falar aqui". Espreitam propostas culturais: "O coração de um pugilista", "Árabe — Curso de iniciação", "Explicações — Matemática, Física, Química", "Sabe dançar?". E há surpresas, boas notícias: "Vende-se roupa para senhoras fortes", "Sexta estamos abertos", "Já há alheiras de caça", "Furam-se — orelhas, nariz — sem dor".
As tentações abundam, plurais: "Streep tease", "Artigos eróticos — Cabinas de video", "Programas especiais para noivos", "Óculos de sol". Os acenos da fortuna são constantes: "Raspe e ganhe", "Amanhã anda a roda", "Jackpot". Desabafos indignados: "Puta q pariu os hip-hopers"; desesperados: "Sofia, amo-te". Alertas de emergência, frase-relâmpago para debelar o perigo em instalações de alimentação de gás, nos prédios: "En cas de danger enfoncer et pousser le bouton rouge". Em socorro das dúvidas, anúncios na cidade publicitam "Traduções".
Quem rumar à sede da Associação de Surdos do Porto e, aí chegado, der com o nariz na porta, neste transe, útil é saber que o recurso é auditivo: "(...) tocar campainha 2.º andar esquerdo". Por ali perto, num velho prédio fronteiro ao jardim de S. Lázaro, quem quiser fazer-se anunciar tem de agir conforme instrutório em esmalte, constante na porta de entrada, regendo o número de golpes do batente: "3.º andar — 3 vezes; 2.º andar — 2 vezes; 1.º andar 1 vez; rés-do-chão 4 vezes". Uma ida Guimarães torna imperdível, no centro histórico, descobrir a "Calça sexual com separação das pernas — a calça mais mediática do século". No Porto, há "Promoção de calças de veludo" e de "soutiens".
Por via das palavras, abrem-se caminhos de relação com o contexto. Devagar, de perto, letra a letra, se decifram os espaços. Com a vida a correr-nos rasteira, temos olhos para minudências: "Trabalhe a partir de casa ou estabelecimento ganhando até 9.000$00/dia. Part ou full time. Marque entrevista", "Consultas espirituais com marcação ou no local". Endinheirados, perscrutamos cotas altas: "Tempo de Sol — Maiorca, Tenerife, Las Palmas".
Constante é a rua, habitada por palavras banais, mensagens desdenhadas, invisíveis: "Estou na Estrela dos Caldeireiros, no tasco, 156". Referências fugazes, textos insignificantes, que ganham dimensão inesperada, estatuto, quando olhados de frente. A ponto de se tornarem documento, testemunho intrigante ou mesmo surreal, deste tempo e de nós.
(© Augusto Baptista)

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