Lugares de peregrinação obrigatória, as casas de banho constituem destino divergente para homens, para mulheres. Esta particularidade levou ao surgimento de sinalização apropriada, indicando a porta de Adão, a porta de Eva. Aqui publico - entre histórias, observações e notícias - retratos destes peculiares sinais de trânsito.
W.C., casa de banho, sanitários, lavabos são modos frequentes de designar o sítio em que se cumprem imperativos bem precisos. Retrete é hoje palavra segregada. Colou-se à designação ideia sombria, imagem de local acanhado, fétido, insalubre. De mau gosto seria inquirir num restaurante pela retrete, pela latrina ou, pior ainda, usar vocábulos que o dicionário consagra, mas que a sociedade condiciona. Num tasco, entre copos de tinto e verbo despudorado, outros seriam os entendimentos.
Ao arrepio dos juízos do presente, no apeadeiro de Miramar, entre as estações ferroviárias Campanhã-Espinho, maiúsculas gradas em azulejo antigo, sobrevivem "Retretes", para "Hómens" e "Senhôras". Uma relíquia vocabular a resistir à margem da linha. E do tempo.
Em desuso caíram as palavras comua, sentina, cloaca. Esta a dar origem a cloacário: funcionário que entre os romanos tratava das instalações sanitárias e dos canos de esgoto. Igual destino tiveram os vocábulos privada, necessárias, casinha, secreta.
Necessárias, ainda apanhei este termo, letra gorda, no exterior de um refúgio de aflições, quase em ruínas. Privada e casinha é raro ouvir. E pena foi que se tivesse perdido a designação secreta. Entre todas, secreta será talvez a palavra que melhor exprime este universo reservado, solitário, pessoal, íntimo.
Apesar da consagrada individualidade do espaço, há utilizadores com outros pensamentos. Na estação de Campanhã, as portas das cabinas sanitárias masculinas exibiam tabuleta: "Só é permitida a entrada a uma pessoa de cada vez" (após pagamento de 50 cêntimos). Na área dos lavatórios, novas e enigmáticas chamadas de atenção: "Usar os secadores apenas para secar as mãos" e "Só é permitido trocar de roupa dentro dos sanitários".
De volta à terminologia, o Froufe Andrade, parceiro de andanças jornalísticas, contou-me uma história. Ele miúdo, um dia chegou a casa da avó uma velha amiga: dona Carmen. Apóstola da Acção Católica, cristianíssima figura, chapéu preto com véu de renda, a senhora vinha impressionada. Em missão de bem-fazer por ilhas e bairros pobres a distribuir pagelas, santinhos e boas palavras, calhou de entrar em lar incréu. Boqueabriu: "Um mimo de limpeza, dona Margarida. Até o posto humilde dava gosto ver". Dona Carmen pelas costas, intrigado, o pequeno Froufe perguntou que coisa era posto humilde. "É a casinha", esclareceu a avó.
Posto humilde! Lugar de despojamento, verdade, igualização - ditada por cotas naturais. Difícil é imaginar empresário de sucesso, top model, governante, a frequentar o habitáculo, o posto humilde, em obediência às leis do corpo. Amedronta tanta fragilidade.
Lidamos mal com a nossa natureza. Defendemo-nos com o humor. A rir exorcizamos fantasmas, compartilhamos receios. Socializamos o que é do foro privado, pessoal. É fértil o anedotário, as quadras alusivas. Na própria casa de banho, as portas, as paredes, são painéis escrevinhados a lápis, a esferográfica, a canivete. Prepondera, com respeito aos espaços masculinos, o texto boçal, primário: rosto sem máscara de tempos concretos, provocação, catarse. Mas há surpresas: desabafos lúcidos, apontamentos bem dispostos, criativos.
Esta escrita escatológica pressupõe um público leitor fiel e disponível, que frequentemente interage, se manifesta, corta, reescreve, opina. Mas parte dos utentes, maioria silenciosa, fica-se pela leitura. Dos escritos, e de jornais, revistas, histórias aos quadradinhos. E há quem aproveite para consultar livros de estudo, concentrar-se em prosa substantiva, poesia, texto técnico.
Constante é a disponibilidade para "ler a mensagem", o que fez com que a publicidade se tente insinuar no local. O "Jornal de Notícias", há uns cinco anos, noticiava a instalação duma rede de 1 500 placards visando públicos-alvo diferenciados, nos sanitários de bares, restaurantes, clínicas, centros de espectáculos e de exposições.
O princípio era simples. Os empresários alugavam “uma ou mais paredes por cima da sanita ou do lava-mãos" e, nesse espaço, eram colocadas molduras para afixação publicitária. Seria "um verdadeiro tête-a tête entre um único potencial consumidor e a moldura-anúncio", garantia o artigo. Não parece que o negócio prosperasse, a traduzir reservas do universo libertário da secreta à profanação do seu espaço.
Pedro Barbosa, docente universitário, publicou em 1976 "O guardador de retretes". Obra "que pelo conteúdo e contra a intenção é um anti-livro" à volta dos escritos solitários em paredes e portas dos lavabos. Aí consta matéria de reflexão, coligida no decurso de "atribuladas e internacionais deambulações retretológicas por essa velha Europa, além-aquém". E o que nos fica é um texto humorado e ácido, acompanhado da transcrição de quadras, desabafos "retretológicos", em Portugal sobretudo, e no masculino. Quanto à nossa "retretologia feminina", o autor conclui "por testemunhos indirectos" haver menor produtividade, menor grau de politização, menor teor pornográfico e, enfim, "um acentuado pendor para o sentimentalismo, com abundância de coraçõeszinhos (...)".
A diferenciação sexual não ocorre só no discurso interior. Nos cafés, restaurantes, bares, praças públicas, as casas de banho são, na sua exterioridade e habitualmente, ponto de divergência. Quem demandar as instalações, quase sempre situadas em lugar escuso, ao fundo, sabe que, em dado momento, os homens vão num sentido, as mulheres noutro. Às vezes, para utilização comum, há um lavatório exterior, um secador de mãos, um espelho. Mas, por norma, são espaços separados, dir-se-ia opostos. Para cada lado, abre-se uma área ampla ou exígua, com utensilagem apropriada ao ser masculino ou feminino.
O que se passa em cada mundo é mistério, para o outro. Homem de bem a entrar na casa de banho das senhoras - ou vice-versa - só por embaraçoso lapso. Transgressão que rapidamente deverá ser sanada com inversão de marcha, desculpas, e risinho.
Este estado de coisas pressupõe a existência de indicações claras, exteriores às instalações, que, num relance e sem equívocos, esclareçam qual dos mundos demandar: o dos homens, o das mulheres.
Justamente Homens/Mulheres, referência escrita com frequência em maiúsculas, é um dos modos de sinalização entre nós. Alternativa é Homens/Senhoras ou, para os dois casos, a versão abreviada H/M e H/S. As variadas soluções às vezes casam com fotografias e desenhos, realistas ou estilizados, em que se expressa de um modo visualmente eficaz, entendível pela generalidade dos aflitos, qual o caminho a tomar, que porta abrir.
Cada vez mais, convém dizer, as placas indicativas aparecem com grafismo padronizado, em prejuízo da variedade, da imaginação das soluções. Também ultimamente, em espaços modernos, começaram a surgir sanitários adaptados a casos de deficiência física: um novo e importante tipo de infraestrutura, com implantação crescente e sinalização própria.
Enfim, haja olhos para as figuras, os sinais: amostra dos modos como hoje, entre nós e pelo mundo (com o apoio da internet) se diz homem, se diz mulher, secretamente.
(© Texto de Augusto Baptista)
Criativa forma de esclarecer - informar!
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