Ainda no berço, conheci-o. Lembrança difusa, odor a canela. Depois, miúdo, recordo-o num hálito quente e nítido de bacalhau e batatas, pés de tronchuda, a boca da panela, sempre a maior, baforadas densas a enevoarem a cozinha. Iluminada pela toalha de linho da avó, mesa farta: bilharacos, rabanadas, uvas passas. E nozes, pinhões, apesar do preço.
O tempo da família grande.
Todos apareciam. E ele não faltava. Chegava tarde, ceia alta, por volta da hora explosiva do espumante, rolhas no tecto em ricochetes cegos. No auge do alvoroço, pam! Todo o mundo, pam!, transido, se calava. As pancadas, pam!, as três pancadas com a acha na grelha do fogão a lenha.
O sinal.
Recuperada a respiração, algazarra, saltávamos aos brinquedos. No frenesim do que era meu, teu, por ali andaria ainda ele na cozinha, embora com rigor e em verdade nunca nos tenhamos cruzado, o tenha visto.
Anos mais tarde, a mudança para a cidade, um sem-regresso ao aconchego da velha casa. E a revelação cruel de todo o embuste.
Longo luto.
Um dia, homem feito, às compras num centro comercial, de repente, em carne e osso, à minha frente: o patriarca da infância. As mesmas barbas brancas!
Não mais larguei o meu herói. Deslumbrada sombra, segui-o para todo o lado, horas a fio. Até que às tantas ele se aproximou e, baixinho, barbas coladas ao ouvido, se aproximou e disse para eu o esperar mais adiante, ao dobrar da esquina. Que ia só ali, e vinha já.
(in "O homem que", gatopardo 2008, Augusto Baptista)
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