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terça-feira, 23 de julho de 2013

De arco e gancheta


Um sonho fatal

Com algum atrevimento face à idade do interlocutor, perguntei o que andava ele a fazer na Rotunda da Boavista, feito menino a espantar transeuntes. A resposta revelou história com contornos demorados. E um sonho fatal. Ambos com pressa, marcámos encontro para depois. 1

Texto e fotografia
Augusto Baptista



O Vitor, Vitor Manuel Pinto Matos, nasceu no Porto em 1932, tem 80 anos. Cobrador e fiscal dos STCP, 2 aí trabalhou até à reforma. Antes conheceu outros empregos: sapateiro aos 12, litografia aos 15, fábrica de borrachas depois. Neste ínterim, andou na tropa. Casou, teve filhos.
E a vida, a sua vida, seria episódio manso, não fora um acontecimento que há um ano lhe sobressaltou os dias, um sonho fatal, como ele diz. História que a seu modo conta e eu, a meu jeito, escrevo:

Nasci no Hospital de Santo António, fui criado nas Escadas dos Guindais, aqui no Porto. Aos 7 anos os meus avós e a minha mãe foram morar para Gaia e eu entrei na escola.
Por ter passado no exame da 1.ª classe, o meu avô disse à minha avó, parece que o estou a ver, “Vou comprar um arco para o pequeno”. Passei logo a ser dono de um arco, mesmo sem ainda o ter: aquilo que o meu avô prometia, fazia.
Na altura, o arco seria uma coisa cara, que eu gostava de ter um, não tinha. O meu avô deve ter feito sacrifício para mo dar. Ele era desses que andavam a carregar na Ribeira fardos de bacalhau, dos navios para os carros de bois. Vi-o uma única vez, nunca mais lá tornei. Tive pena de ver o meu avô naquele serviço.
Passado pouco tempo ele deu-me o arco. Daqueles que cantam na rua. Até aos 12 anos o arco passou a ser a minha perdição. Com essa idade arranjei emprego, fui trabalhar de sapateiro para o Largo dos Aviadores, em Gaia. Já não podia andar de arco. E, desde aí, nunca mais lhe peguei.

 

O ano passado, em Junho, o dia não me recordo, tive um sonho. Sonhei que andava de arco por aí a correr. O meu arquinho! Foi um sonho fatal. De manhã acordei e disse para a minha mulher, Vais ter paciência, vou comprar um arco. E ela, que não fazia ideia do que isso era, “Um arco?!”



Comecei a tentar saber onde o havia de arranjar. Como moro perto da Rua da Senhora do Porto, encontrei um amigo, quase vizinho, perguntei-lhe. E ele, “Ó pá, atravessas a rua de Monte dos Burgos, na esquina tem um garageiro. Vai aí.“ Nós chamamos garageiro, não sei se este será o nome próprio, a uma casa que vende e ajeita bicicletas.
Cheguei lá, aparece-me um rapaz com uma simpatia fantástica e eu, Ó amigo, vai ficar zangado, mas olhe, sonhei. Contei-lhe a história. E ele, “Já sei o que quer, espere.” Passados minutos, vem com dois aros de bicicleta, um mais largo, outro mais estreito. Aquilo nem precisa de gancheta, até com um pau se conduz. E eu, Se calhar não vou ter dinheiro. Ele ficou a olhar, e diz-me “Isso é lixo!”
Aquele aro era bom, não tinha outro, mas – também a perguntar – resolvi descobrir um melhor. “Ó pá, na Rua do Almada é capaz de ter.” Andei para baixo, para cima e, quase ao princípio, no n.º 155, encontrei uma casa, uma casa, posso dizer o nome?, Rocha & Leitão.
Apareceu-me um rapaz  muito delicado, o Helder, depois é que soube o nome, que me prometeu arranjar. Isto em Junho, só que se passou Julho, Agosto, Setembro, Outubro... Passaram-se os 4 meses, depois tive uma alegria. No mês em que fazia anos (aproveito para dizer que 7 de Outubro é o dia em que abriam as escolas antigamente), o rapaz telefonou-me “Ó senhor Vitor, o homem prometeu-me que para a semana vem o arco.”
Tinha lá um sinal, que eu dei-lhe cinco euros de sinal, cheguei ao fim e ele veio com dois arcos. E eu disse, Ó pá, isso é muito. E ele, “Um é de graça pelo tempo que isto demorou, o outro são dez euros. Deixou cinco, paga cinco.“
Hoje tenho esses dois arcos e, em casa, tenho ainda os aros de bicicleta, tenho-os lá, não os deito fora. Tenho dois arcos e dois aros.
Entretanto, um vizinho meu, reformado da GNR, Narciso, bom rapaz, viu o meu entusiasmo, fez-me uma gancheta. Depois é que me fez esta, melhor para o paralelo. No paralelo, mesmo devagarinho, o arco salta muito da gancheta para fora, custa mais.
O arco com que ando agora é igual ao que eu tive em pequenino, o toque é tal e qual. Chamam a isto verguinha. A gancheta é feita de arame de ferro. É forte mesmo. O arco vai ti ti ti ti. Faz-me lembrar, na Páscoa, as campainhas de Nosso Senhor.


Sempre que posso dou a minha volta. Tem-me feito muito bem, nunca tive problemas com as pernas, nem com nada. As pernas sinto-as mais rijas, mais pernas. Tenho dias em que não posso andar. Se for com a mulher a qualquer lado, fazer umas compras ou assim, não levo o arco. Por uma questão de depois a ter de ajudar.
Ando com o arco aqui no Porto para todo o lado. Se hei-de ir sem nada, vou com o arquito, com ele no chão. E sempre sozinho. Gostava, sinceramente, de andar com mais gente. Mas ninguém quer vir comigo. O meu filho mais velho diz--me, “Ó pai, vai ao Conde Ferreira!” O meu irmão, “Vai ao Magalhães de Lemos, pode ser que eles te dêem remédio para isso.”




Quando vou na rua, as pessoas ficam admiradas. Os da minha idade dizem-me, “Ó amigo, que saudades”. Às vezes paro, conto que tive um sonho, conto esta história. Aqueles que já têm conhecimento disto dizem, “Deixe-me dar uma volta”, Ó senhor, está aqui o arco, mas não vá para longe, que depois tenho de ir a correr atrás de si. O gajo pode fazer como o outro das fotografias, dá o kodak e, enquanto vai para ser fotografado, olha para trás e já lá não está ninguém.
Para andar de arco é preciso saber. Dá-se um lanço com a mão esquerda e a outra empurra. A técnica é talvez na mão, suponho eu. Se o arco entortar, tento pô-lo no outro lado, deve ser isso. Sinceramente, não posso dizer.
A minha ideia é andar com o arco até poder. Enquanto tiver força e vontade, ando sempre. E quando um dia me apagar, antes disso digo à mulher, Pega neste arquinho, só um, mete-o dentro do caixão. Para ir comigo. É o meu sonho, é uma das coisas que hei-de pedir. Outra é que quero ser cremado. Da maneira como isto está, vejo muita falta de respeito, as campas a ganharem ervas. Queimadinho, estou arrumado. E ao arco depois lá saberão o que lhe hão-de fazer, que eu não sei. 3




Notas
1. 16 de Julho 2013: a data deste encontro.
2. Sociedade de Transportes Colectivos do Porto.
3. Insistente, o Vitor pediu-me que nesta prosa evocasse os seus amigos de menino, velhos companheiros de arco e gancheta, que gostaria de reencontrar. O Serafim Manteiga. O Belmiro Tavares, “um rapaz que tinha uma voz fantástica”. O António, “nós chamávamos-lhe Tesinho, porque ele sofria das costas, andava sempre muito direito…” E mais dois ou três, que os anos lhe varreram o nome. Todos de Gaia, que, nas Escadas dos Guindais, Vitor não se lembra de ninguém.


8 comentários:

  1. AB......... isto é uma delicia.........e verdade seja dita o sr. Vítor tem mesmo "estofo" para isto.........é preciso muita coragem para se andar de arco aos 80 anos e acredito que o faz com um gozo dos diabos .......realmente dizem que a partir de determinada altura na nossa vida voltamos a ser meninos.......que lhe saiba muito bem......e eu aqui a roer-me de inveja, já que adorava voltar a fazer um carrinho de rolamentos e descer a rua da Bataria a toda a velocidade, como o fiz centenas de vezes há mais de 50 anos.......
    Mais um excelente trabalho meu irmão, já o coloquei no meu FB !

    Abraço forte e cordial !

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  2. Uma real estória bem apanhada e bem descrita. Difícil é perceber como é que o homem do arco, o Vítor, contou a estória, dado o recato que estas pessoas costumam ter.

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  3. Deliciosa esta história real e este texto. Recordei os meus tempos de mais jovem em que, como menino pobre, brinquei com arco e gancheta. Ainda este ano, no Dia Mundial da Criança fui ao Palácio de Cristal com um sobrinho-neto de 5 anos de idade onde estavam à disposição das crianças diversos brinquedos artesanais de outros tempos. O único que estava parado pois ninguém sabia para que servia era um arco e uma gancheta...E lá tive eu, com muito gozo, de mostrar a muitas crianças e jovens presentes como se brincava nos tempos em que não havia telemóveis...Um abraço ao Sr. Vitor e espero um dia cruzar-me com ele para lhe poder dar um abraço e uma voltinha no seu arco que espero que por muitos e muitos anos role pelas ruas do Porto... Um abraço também ao Augusto Baptista

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  4. Um título que desperta a humana curiosidade, por via, sobretudo, do ‘fatal’....
    visto e revisto o (grande) apontamento, que dizer ? A tua escrita, os ‘bonecos’ ampliam o sonho, a meninice dos oitas e muitos anos....
    Parabéns e que venham mais histórias de vida e devidas .

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  5. Perdido o que tinha escrito e que reputo mais pertinente, aqui fica este desajeitado aplauso cúmplice.
    Tens, em muitos dos teus escritos, revelado um Porto por quem as pessoas passam sem ver que a cidade é todas as outras pessoas.
    Há nesta revelação do sonho do sr. Vítor VELHO DO ARCO mundos interiores por muitos nem em sonhos vistos ou relegados para o descuidado espanto de coisas do arco da velha (melhor seria da ARCA DA VELHA). Espero que por aí vejas e reveles o octogenário do pião da infância a rodopiar vertigens palpáveis, velhos do berlinde, da pinche, da choca, todos os velhos de alma menina capazes de preencher de espanto os transeuntes que importa acordar.
    Grande abraço, meu irmão que nunca me deixas solitário.
    Augusto

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  6. acima, onde se lê pinche teria eu querido escrever pincha

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  7. Quando era pequenino divertia-me a pensar no arco e gancheta como um meio de transporte.
    "- Ó Vítor, se não te despachas chegas atrasado ao primeiro tempo!"
    "- Não te preocupes, eu vou de arco e gancheta."

    Mais uma pequena/grande história... claramente em dia de sorte média/alta. :^)
    Um abraço... e obrigado.

    E viva o Porto!

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  8. Um sonho só atingível a quem ainda preserva a sua meninice, linda história e muito bem narrada. Espero que o Sr. Vítor ainda passeie com o seu arco por muitos anos, demonstrando que os brinquedos não se medem pelo seu "valor" mas sim pelo prazer dão. Parabéns pelo blog.

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