In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág 44, Augusto Baptista
domingo, 18 de julho de 2010
Surucucu
In Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos, pág 44, Augusto Baptista
terça-feira, 8 de junho de 2010
Nome nenhum
Olhou a parede no cotovelo do prédio, por um quase acaso. Conhecia bem a pequena cidade, jamais precisara saber o nome das ruas. Lançado o olhar, perdeu-se. E teimou na busca de uma placa, inscrição, referência, nomeação do lugar.
Neste entretém, deu em discorrer na ordem obtusa que nos impõe mensagens ao nível dos olhos, quando se não quer; nos obriga a catar alturas, quando se procura.
Partiu sem destino, sem rota, por avenidas, vielas. Farejou cotas altas, em muros, frontarias. Não reconheceu um nome, alguém da sua juventude, por ali pendurado. Como se uma vontade quisesse apagar da memória esse calendário, essa urgência de luta e cultura.
Talvez um quelho, esquina, umas escadas redondas, talvez um beco acolhesse a luz de um nome familiar, cúmplice. Ensaiou perguntar. Mas por ali quem passava, visivelmente, tinha mais que fazer.
In Histórias de Passagem, Augusto Baptista, http://reporter.canalblog.com/
quinta-feira, 3 de junho de 2010
A testemunha
Presencia tudo: vê Tãozinho sacar o maço do bolso paterno, vê o isqueiro, vê as lentas baforadas, a tosse. Ao descobrir-se espiado, o menino sobressalta-se:
– Não contas ao papá. Contas?! – gesto corruptor, propõe uma passa.
A testemunha recusa, brusca e muda: péssimo presságio! Esgazeado pelo fumo, Tãozinho pousa o cigarro na borda da mesa. E, mãos ambas, salta ao pescoço do papagaio.
In O Caçador de Luas, Augusto Baptista, gatopardo 2003
quarta-feira, 2 de junho de 2010
O homem que morreu duas vezes
Murilo comprou uma tv gigante, ecrã panorâmico, 360 graus. A arrojada iniciativa obrigou a obras em casa, impôs sacrifícios: dramática redução da área habitável, renúncia de dispensa, varandas, WC… Em suma, perdeu em lar, ganhou em amplitude televisiva, abertura ao mundo.
Agora, tem Pequim à distância de um imperceptível movimento do indicador, Toronto na fracção de um clic, Paris ao alcance de um dedilhado breve do polegar, cosmos, fundos marinhos, filmes, tempestades, num relampejante esgar da falangeta.
Longe a exígua janela para espreitar a rua e pouco mais. O universo, em todos os sentidos, é-lhe hoje instantaneamente convocável. Murilo arribou, enfim, à ultra-sofistificação tecnológica que lhe dá realidade, a toda a volta. E alguns contratempos: nas manifestações, por exemplo, os insultos, os protestos, chovem-lhe de todos os lados; nos teatros de guerra, balas, emboscadas, fogo de artilharia, surpreendem-no de frente e à traição.
Pedem-se-lhe nervos de aço!
Cercado pela extrema factualidade televisiva, texturas parabólicas em pulsante nitidez, Murilo é percorrido pelo cheiro a pólvora, o medo, sangue a golfar dos moribundos, a encharcar a alcatifa, entre clamores, agonia, o silvo das balas rente à cabeça, ele encurralado atrás do sofá e, logo, uf!, a savana, os elefantes, o hálito azotado da urina do macho dominante, ele a progredir cauteloso contra o vento, inopinadas, viscosas, as excreções da manada e, nesta aflição madrugadora, o botão salvador, o suor enjoativo dos cowboys, pistoleiro dedo no gatilho – dispara, não dispara – ele, mãos no ar, aliviado, a salvo do horror paquidérmico.
Mas, o que custa, o que mais lhe custa, é entrar em directo nos telejornais, ser jogado para um qualquer contexto, logo envolvido. Particularmente acidentado, o último fim-de-semana: emboscado em Bagdad, vê-se embrulhado numa sublevação prisional em São Paulo, escapa a um ataque israelita na Palestina, livra-se in extremis de casar com uma velha mestre-escola em Las Vegas, perde uma fortuna num casino da Birmânia, colhido na Monumental de Madrid esvai-se nos braços da Sharon Stone, ambulância a caminho do hospital, tiloli!! , tiloli!, irrompe uma voz aflita:
– A casa de banho?! Rápido, Murilo! A nossa casa de b… – E, supreendendo o pungente desenlace na ambulância, demenciada: – Oh! Que fazes aí no sofá com essa mulher?! Diz-me!
Em contra-luz, Murilo entreviu uma figura familiar à porta do telesalão, vagamente Carlota, a consorte, bolseira em Paris, inexplicavelmente ali, ele nos braços da Sharon a caminho do hospital, sem tempo para explicar, Carlota a desfocar-se agitada, mãos de repente sacudidas por um estampido rubro.
In O caçador de luas, págs. 106, 107, Augusto Baptista, edições gatopardo
terça-feira, 1 de junho de 2010
Dos tempos
Os dias que correm produzem gente esquisita, pensa o homem que sábado bem cedo demanda transporte para a terra, olho no casal de idosos: ele, óculos escuros, destes de feira, que de tão grandes o aparentam a um moscardo negro; ela, andar acocorado nuns sapatos muito altos, esquelética saia curta, a mostrar o umbigo tatuado, a cueca.
De repente, dobra a esquina um fulano de fato claro e chapéu, magrote, já na casa dos setenta. As mãos para a frente sugerem segurar rédea forte, ele montado em fogoso corcel invisível, insubmisso, tais e tantas as piruetas, cabriolas e volteios desenhados no passeio.
Mais à frente, na entrada do Teatro Nacional, um fulano dorme num colchão de bebé: pés no fofo, a cabeça sobre a pedra. Outro ressona, sentado, caixote de cartão encarapuçado até à cintura. E um cachorro muito preto, enroscado no frio, na magreza, olha guloso a gaivota madrugadora que devora uma pomba, quente ainda.
– Uma desgraça, a Batalha – observa, a caminho da camioneta para a feira dos 4, a mulher gorda, de muletas. Atrás, nada diz a acompanhante, cabeça enterrada num fardo de bugigangas. A mascar chiclets.
in Histórias de passagem, Augusto Baptista
domingo, 30 de maio de 2010
Paixão
In O caçador de luas, Augusto Baptista, edições gatopardo, 2003
Controvérsia
tac! traraaaac! tac!
taac! tac! traraac… taac!
traraaaaaaac! tac!!!
Parou, mão no bolso, a desafiar. Ela soltou os pés, ao rés do salão
pac! prarac… pac! praraaaaaaaaac! pac!!!
Sintética eloquência! Ele ajoelhou, teatral: cabeça baixa, em jeito de rendição. Num repente, contra-atacou
tac! trarac! tac! tac! traraaac! tac! tac!
trarac... tac! tac! trarac! tac! tac! trarac!
tac!
Ela sorriu num leve volteio de anca, fraseou
pac! prarac! pac! prarac! pac! praararac! pac! pac!
pac! pac!
prarac! pac! pac! pac!
Chão ainda a fumegar, contrapôs ele
tac! trarac! trararac! tac! tac!
tac! tac! traraac! trarac! tac! tac!!!
Ela não se calou
pac! prarac! pac! parac! pac! praraac!
pac! pac! parac! pac! pac!!!
E a discussão não mais parou
tac! trarac! pac! parac! tararac! tac! pac!
pac! tac!
pac! tac! pac! tarac! pac!
tac! pac! tarac! tac! parac! tac! pac!
tac!!!
pac!!!
tac! tac! tac!
parac!
tac!
pac!
pac! tac! tac! pac! praararac! pac! tac!
In O caçador de luas, Augusto Baptista, edições gatopardo, 2003
domingo, 23 de maio de 2010
Projecto aéreo
Em terra, nó firme cerca o dente cariado; rumo ao céu, o foguete torna iminente o instante libertador.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Em passeio de família, a mão-de-vaca mais o pé-de-boi foram dar uma volta com a mãozinha-de-vitela. Onde vão, onde não vão, foram ao talho, para conhecer. E lá entraram, todos os três, o pé-de-boi à frente, as mãos atrás.
Para quem até aí só conhecera o mundo verde, a vida tinha ali a cor complementar. Entre véus vermelhos, carnes vivas, miudezas, vitualhas, entrecobertas com paninhos e toalhas cor-de-sangue.
A mãozinha-de-vitela na sua inocência por ali andava, irrequieta, a saraquitar. Por perto, a mãe. O pai ao largo.
A páginas tantas, deu no olho à mão-de-vaca, grandes, dois olhos de carneiro mal morto, bicho careca. Estava no gancho, a espreitar! Dependurados, penduricalhos.
Depenados, crista alçada, os frangos, mais de vinte, esticados no galanço. E os coelhos, grandes, gordos, tudo pelado, ao monte, carne com carne. Que sítio é este? E a mão-de-vaca cingiu a mãozinha-de-vitela.
Piscar venéreo, o néon. Tesos, os chouriços. E um presunto, rançoso e negro, barba por fazer, curtido em tinto e fumo, partes barradas com colorau, venal, sabido, a acenar com os presunhos… Olho vigilante, a mão-de-vaca, safanão na mãozinha de vitela: Não se mostra os dentes a desconhecidos! E cornos no ar: Onde pára esse pé-de-boi?!
Vidrado nos tons de vermelho, no desfrute da cor, ruminante, o pé-de-boi deambulava solitário. Eléctrico, acorda num sobressalto de mão familiar: Anda, isto não é sítio para a mãozinha. E entredentes: Depois falamos…
Em tropel, iam já a sair pela soleira, afligidos agora por um mesmo mau pressentimento, quando uma mão sinistra as unhas se lhes crava. Vermelho vivo, a todos três. E os mete numa saca aos xadrezes.
In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista
segunda-feira, 17 de maio de 2010
Dos cheiros
Quando chovia, todo o mundo ia ver derrapar os carros. Os que mais dançavam eram os mais cautelosos, os que mais devagar se faziam à ladeira. Ziguezagueavam no paralelo besuntado e, à boca do armazém, quase a vencer o íngreme percurso, navegavam sem norte. Um suplício. Um longo suplício de carros desgovernados a lamberem a estrada, berma a berma. Até se deixarem escorrer. Vencidos.
O povo ria. E a humilhação durava horas. Durava, enfim, o tempo que cada espectador pudesse, que a saga prosseguia quando, por força de afazeres, entre a assistência alguém desarvorava.
A cheirar a azeite.
A terra, para ele a terra é também memória. Esta memória. Memória de este e de outros odores, impregnados na carne. Rasto de vinho tinto e bagaço, na loja do Marcelino, no quelho. Aceno de eucalipto e mimosas na Escola Livre, quando os professores faltavam e a malta ia para ali jogar a bola. Cheiro a chuva, a terra molhada, a pão, a campos lavrados. Primavera. Aroma de flor de laranjeira, tília, na avenida, no jardim. Um remoto fumo acre vindo da casa do ferrador, velho Pote, ferraduras em lume a estrugir na pata dos bois, dos garranos.
A terra, a sua terra, perfume de soalho lavado, sabão amarelo. Leite mungido, jacto fino, sonoro, apontado ao canado. Um sinal de café moído na loja do Cipriano Martins. Presença de castanha assada na esquina do Pintor, Casa D. Hóspedes, anunciada assim na parede. Zamacóis. Brisa de vitela assada no Pechão. Padas de Ul, inchadas padas de Ul com fiambre, aprontadas pelo senhor Augusto, no Flecha.
A terra, a sua terra, cheiro velho a procissão. Pés penitentes a pisar os verdes sobre a estrada, mulheres com mantilhas pretas, homens submissos, anjinhos imaculados, todos levados na cadência da banda, das orações, das velas tremeluzentes a agigantar a noite, as sombras, os medos.
A terra, a sua terra, longínqua respiração. Hálito quente e bom do avô, do seu velho avô no Inverno, a bafejar-lhe o peito. A trespassar-lhe a roupa. A vazar o tempo.
In http://reporter.canalblog.com/ Augusto Baptista
quarta-feira, 12 de maio de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Vida madrasta! Ele, fisicamente parecidíssimo com o patrão, na empresa não passava de um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.
Resolveu vingar-se da má sorte. Gizou plano. E, por um dia, fez-se passar pelo outro. Resultou: senhor doutor para cima, senhor doutor para baixo, reuniões, salamaleques, secretárias a sacudir-lhe a caspa do casaco.
Um dia em cheio! Praticamente só ensombrado por um pequeno pormenor: “Imperdoável ele ter faltado sem justificação, senhor doutor!” – justiçava o chefe de pessoal.
Ainda tentou relativizar o caso, dar uma nova oportunidade ao homem. “Seria um grave precedente! Há normas!” – inflexível, o burocrata.
Não havia volta a dar-lhe. E teve mesmo de despedir o faltoso. Um zé-ninguém. Um número, ironicamente capicua.
In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Augusto Baptista
terça-feira, 11 de maio de 2010
O homem que engole aço
O homem que se abotoou com umas massas
sábado, 8 de maio de 2010
sexta-feira, 7 de maio de 2010
Dos pássaros
Onde, os pássaros? Em que lugar se acolhem, se guardam, os pássaros aqui? Onde, que ninguém os vê, os ouve, lhes pressente os ninhos? O voo. Para onde fugiram? Quem os matou?
Foi ontem, foi ontem talvez, ainda ontem viam-se verdilhões, bando grosso a afogar de supetão os quintais. Os verdilhões ao assalto! A rirem-se dos espantalhos. A rirem-se de nós. E as abetoninhas, aves peregrinas, no Inverno a pintarem de branco os campos, penacho a despontar na erva. Petos reais, gaios. Tordos.
Os tordos! Os tordos em bando tapavam o Sol. Ao entardecer irrompiam em nuvens irrequietas, em redemoinho, em furacão. Tempestade de asas no céu, tormenta a anunciar o bom tempo.
Os melros, metálica plumagem negra, incendiado bico amarelo, estremunhavam os silvados. Havia pintassilgos, pintarroxos, carriças, irrequieto saltito no medronheiro. Havia corvos, poupas, galinholas, pegas. Canto de rouxinol. Havia piscos.
E os pardais?! Onde se escondem os pardais que iluminavam as tílias no jardim?
segunda-feira, 3 de maio de 2010
O homem que entende as árvores
As árvores são ervas que entroncaram, com o tempo. O processo fez-se devagar, por muitos e desencontrados caminhos. Umas a viajar rente às praias, outras a palmilhar chãos agrestes, trilhos de meter medo, solidões. Outras a vaguear perdidas no lume do deserto.
Prisioneiras, pés enterrados, nesta obstinação peregrina deram a volta ao mundo. Mergulharam nos fundos marinhos e aí, despenteadas, dançam entre brisas e correntes. Conquistaram jardins, praças, o centro das cidades. Voando, arribaram a remotos paradeiros: Via Láctea e, talvez, mais longe.
Estas viagens modelaram criaturas bem diferentes. Algumas perfumaram-se, outras esmeraram-se mais no bojo, mais na seiva, no ornato, nos usos medicinais, no aconchego dos ninhos, na doçura dos frutos.
Propensas para as artes, algumas cuidam da harmonia dos veios, do colorido da tez, da macieza do toque, a pensar na talha fina, nos torneados das mesas, no aprumo das cadeiras. Na pele da estatuária. Na ternura dos berços. Outras dão-se à palavra, feitas cartas, livros. Muitas medram cingidas por paixões de namorados, barco a remos a pairar no lago. Outras se fizeram caravela e partiram.
Há árvores que aprimoraram as folhas para tisanas, xaropes, vapores, inalações. As que desvairaram em tamanho, se espraiam em sombra mansa, por quilómetros, o calor a uivar à volta. Grossa copa, muitas se enfeitam de florinha minúscula, cor-de-rosa, branca, azul. Enquanto, débeis, dobradas, miudinhas, algumas penam a amamentar ao colo os filhos, frutos pesados, casca fina.
E há-de-lhes doer – como suspeitou Raul Brandão – há-de-lhes doer brotar, ousar flor, rebentação!
Dor maior lhes causará a indiferença, o mau-olhado, a agressão. A lâmina. Elas a tremer na aragem. Elas sem terem tempo de fugir.
O homem que assim falou rasga a terra, decidido. Uma a uma, com árvores tinge a manhã.
In "o homem que", Augusto Baptista, gatopardo 2008
sexta-feira, 30 de abril de 2010
Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias
Entreolham-se. E entresonhando, entretecem entrebeijos entretanto. Entredentes, entreouvidos, entresseios, entressorrindo entrementes, nas entrelinhas dos entrenós, entrecruzam entretelas. Entreligam entremeios. Entrelaçam entrefolhos. Entrechocam entretalhos. Entrepernas entretidos.
In “Histórias de coisa nenhuma e outras pequenas significâncias”, Campo das Letras, Augusto Baptista
quinta-feira, 29 de abril de 2010
O homem que murchou
Os verdes anos passou-os na cidade fechado em gabinetes, estufas alcatifadas, submetido a regras, horas certas, gravata. Tudo lúcido, exacto. Sem Sol. Depois a reforma, o campo, os pássaros, árvores, a contemplação por detrás da cortina para não recozer a pele, as mãos sobre a bengala, o tempo a sobejar.
Às vezes a família aparece, olhos de relógio. Conversa, a de sempre, quase só silêncios. Na hora da despedida, uma vez não se conteve, falou. Falou e disse, a olhar os campos mirrados no bafo da tarde, hoje estou triste, disse, numa poética campesina que ninguém ali alcançou, sequer procurou compreender, disse, fixo nos frutos engelhados, tontos, hoje estou triste como um tomate.
(in "O homem que", gatopardo 2008, Augusto Baptista)