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sábado, 31 de julho de 2021

 O GOLPE

Atormentava-o a fome, as privações, a solidão. O passar dos dias iguais, sempre ele com ele, sem amigos, assim sempre assim, desde que ficou desempregado, faz anos.

Um dia, na terra ressequida de um vaso a um canto, vê despontar a esperança, enxerga alguém com quem partilhar a vida.

Olhos no recém-chegado, multiplica-se em atenciosos cuidados. Passa horas em desvelos de rega, em temperanças de luz, fertilizantes e húmus.

Sem frustrar as expectativas, a débil criatura vai crescendo devagar, não tarda a assumir-se no que era de raiz: um garboso pé de couve. De couve tronchuda, precisamente. 

A casa ilumina-se. Uma companhia: cúmplice de conversas pela tarde, a exprimir-se no eloquente silêncio vegetal.

A relação entre ambos em crescendo, breve aporta no que alguns chamam paixão. Juntos correm mundo abraçados pela cinta: nos transportes, no cinema, ele furta-se ao bilhete, ela não paga viagem nem ingresso. Nos cafés fazem sala, copo de água a dividir pelos dois.

Os tempos idílicos são fugazes: a tronchuda encarquilha, a pobreza demencia. Uma madrugada, roído pelas privações – olhos fixos na velha companheira – ele acorda em delírios gulosos, desorbitado, na mão sinistra a faca a anunciar o golpe. Ao lume a panela, água a levantar fervura. Estremece. Para que ignomínia o arrasta a fome?!

Agarra com força a faca pelo punho. Agarra com força desmedida a faca pelo punho. E deixa que o gume, imperativo, cumpra o seu destino rumo ao coração.

Augusto Baptista


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